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Ponto de fuga
Guidom e selim
Entre os filmes recentes, o mais original, mais extravagante, mais poético, mais belo também, aquele que deve
ser visto sem falta, é "As Bicicletas de Belleville", do
francês Sylvain Chaumet. Longa-metragem de animação, o primeiro do diretor, renova o gênero, com uma
invenção gráfica e uma imaginação sem limites, escapando de toda convenção ou lugar-comum. Pode divertir as crianças, mas sua complexidade necessita do
olhar adulto.
De um modo abstrato, no dizer de um crítico italiano,
tem três eixos: a solidão, a solidariedade e a determinação. São esses, de fato, os motores, mas individuais e
marginais. No oposto, os comportamentos coletivos
surgem como cruéis ou, no mínimo, indiferentes.
Emerge uma dureza impiedosa que nasce gêmea do humor maluco.
Embora a produção seja franco-belgo-canadense, as
referências culturais são francesas. A história inicia-se
na França, centrada no "Tour de France", a dura prova
de ciclismo que dá a volta no país, acontecimento esportivo popular por excelência. Artistas franceses fazem aparições: Charles Trenet, Django Reinhardt, Josephine Baker, que foi um elo entre os EUA e a França,
com sua tanga de bananas devorada num palco por espectadores transformados em macacos. Há a inenarrável Ivette Horner (no filme, Roberte Rivette), famosa
acordeonista que acompanhava os ciclistas do "Tour"
amarrada em cima de um furgão, tocando sem parar a
sanfona. Há as piadas intraduzíveis: o locador de pedalinhos é gay, porque em francês, pedalinho é "pédalo",
variante vulgar de um insulto. Essas alusões de caráter
local, no entanto, em nada diminuem um alcance muito
mais amplo.
Cobras e lagartos - Sylvain Chaumet, diretor de "As Bicicletas de Belleville", viveu no Canadá e nos Estados
Unidos. Ficou marcado pelas imagens simplificadas
que um povo faz de outro e as explora no filme: os americanos são forçosamente obesos: na entrada do porto
de Nova York/Belleville, a Estátua da Liberdade é uma
mulher gorda que sustenta um enorme hambúrguer no
lugar da tocha. A vovó portuguesa é forçosamente baixinha, bigoduda e com verruga. Já que os franceses são
chamados de "frogs" pelos anglo-saxões, pois gostam
de comer coisas nojentas (rãs, por exemplo), o filme
mostra um jantar feito só com sapos e girinos, cozidos
na sopa ou em forma de pipoca ou de picolés.
Os cruzamentos culturais se multiplicam: Belleville
(nome de um bairro popular de Paris) é uma Nova York
delirante que lembra várias metrópoles, marcada por
enormes garrafas de vinho, na escala de arranha-céus.
Entre as celebridades, Fred Astaire termina devorado
por seus próprios sapatos, e Glenn Gould, o grande pianista canadense, aparece tocando Bach.
A música, que é admirável, tem um papel essencial
nessa fita quase muda: ela impulsiona a história e determina-lhe o ritmo. Há a nostalgia por uma França de outros tempos, mas não à maneira gentilmente idealizada
de "Amélie Poulain". Com uma densidade que vai sempre ao essencial, cria, dentro de uma feiúra voluntária e
simpática, alucinações visuais, nonsenses que podem
ser melancólicos, ferozes ou bem-humorados, excluindo sentimentalismo. O "Tour de France" que evoca não
é o de hoje: no final, os ciclistas perseguem uma imagem do percurso projetada numa tela.
Traços - A avó, o ciclista, as Triplettes são personagens
principais de "As Bicicletas de Belleville", mas Bruno, o
cão sonhador que late para os trens, é, de todos, o que
tem mais "vida interior". As figuras secundárias são estupendas. Assim, os guarda-costas da Máfia, embutidos
num retângulo negro, ou o maître-d'hôtel no restaurante de luxo, capaz de absurdas contorções exprimindo subserviência melíflua e asquerosa.
Ditos - Citações de Sylvain Chaumet: "Na minha visão
dos subúrbios parisienses, constato que é melhor não se
afeiçoar às belas coisas, porque elas não duram, ao contrário das coisas feias...". "Os ciclistas têm algo de animal. São puros-sangues. Incorporam-se à bicicleta.
Mas, quando descem delas, têm dificuldade em se mover. Eles me parecem comoventes."
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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