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"BÜCHNER" REÚNE A OBRA COMPLETA
DO ESCRITOR ALEMÃO
QUE REVOLUCIONOU A LINGUAGEM
TEATRAL NO SÉCULO 19, COM PEÇAS COMO
"A MORTE DE DANTON" E "WOYZECK", ALÉM
DE TRECHOS DE SUA CORRESPONDÊNCIA
DRAMATURGIA DO SILÊNCIO
Sílvia Fernandes
especial para a Folha
A editora Perspectiva lança em setembro a obra completa do dramaturgo alemão Georg Büchner
(1813-1837), primorosamente organizada, anotada e traduzida por Jacó
Guinsburg e Ingrid Dormien Koudela a
partir da edição crítica estabelecida por
Werner R. Lehmann. A cuidadosa versão
brasileira permite ao leitor comparar a surpreendente criação dramática e literária do
jovem escritor, morto de tifo aos 23 anos, a
excertos de sua correspondência, que interceptam a obra ficcional em muitas passagens, e também ao manifesto revolucionário "O Mensageiro de Essen" (1834), redigido no período de intensa militância
política em Darmstadt.
Dirigido a camponeses e artesãos dessa
região da Alemanha, desenvolve argumentos em favor da agitação revolucionária,
paradoxalmente sustentados por citações
bíblicas, provavelmente incluídas pelo
pastor Weidig, seu co-autor. Os próprios
camponeses delataram a autoria do panfleto, o que valeu a Büchner perseguição
política e mandados de prisão, que o obrigaram a se exilar em Estrasburgo.
As atribulações parecem ter abalado a
atitude positiva do dramaturgo diante da
revolução, transformando-a no amargo
ceticismo que permeia seu primeiro texto
teatral, "A Morte de Danton", escrito entre
janeiro e fevereiro de 1835, nas cinco semanas que antecederam a fuga de Darmstadt.
Pouco antes, na preparação da obra, o então estudante de medicina mergulhara na
leitura de várias histórias da Revolução
Francesa, que lhe forneceram dados precisos sobre o período posterior aos massacres de setembro de 1792.
Na peça, a lembrança dos assassinatos
assombra o protagonista e contribui para
definir o acento trágico que Peter Szondi
detecta com precisão. De acordo com o ensaísta, o texto é a tragédia do revolucionário. O jacobino Georges Danton perdeu a
fé em valores absolutos pelos quais valesse
a pena lutar e, pela clareza excessiva de sua
consciência, foi arrancado da vida antes
mesmo de morrer. Szondi conclui que
uma vida que experimenta a si mesma como morta consente em sua ruína, acabando vítima da própria revolução.
Por outro lado, o processo trágico que
põe o revolucionário na guilhotina da revolução exibe um fatalismo da história comum na obra de Büchner, além de ressaltar o paradoxo da sorte do herói, perseguido por seu inimigo exterior, Robespierre, e
pela memória torturante dos crimes que
ordenou como membro do Comitê de Salvação Pública. "Que é isso que em nós
mente, assassina, rouba?", pergunta Danton numa das cenas da peça, usando as
mesmas palavras de uma carta de Büchner.
Materialismo feroz
Para contextualizar a produção do autor de "A Morte de
Danton", os organizadores da coletânea
reúnem ensaios modelares de Anatol Rosenfeld, Sábato Magaldi, Irene Aron e Alberto Guzik, além de críticas de Mariângela Alves de Lima e Sérgio Sálvia Coelho sobre o espetáculo "Woyzeck", um brasileiro, encenado por Cibele Forjaz em 2003. A
montagem é um dos inúmeros exemplos
de apropriação contemporânea da obra de
Büchner, extremamente próxima de nossa
época, talvez por ter lutado contra a sua.
Situado no período de articulação entre o
romantismo e o realismo social, Büchner
contrapõe ao idealismo de seus antecessores um materialismo feroz, que se aproxima do grotesco especialmente quando investe contra a imagem sublime do herói
clássico. É o que faz em "Woyzeck" (1837),
ao criar o primeiro protagonista proletário
do teatro ocidental.
O texto inacabado foi deixado em forma
de quatro manuscritos divididos em cenas
breves, não-numeradas, que as edições
póstumas trataram de combinar e que este
volume reproduz na íntegra. Escrito a partir de um fato real, o assassinato de uma
prostituta por seu amante Johann Christian Woyzeck na cidade de Leipzig, em
1921, pertence a um gênero particular de
fragmentos que, segundo Brecht, não podem ser considerados incompletos, pois
são obras-primas concebidas em forma de
esboço, como o "Ur-Fausto" de Goethe e o
"Robert Guiscard" de Kleist.
Além de inaugurar a poética do fragmento, um dos procedimentos mais radicais do teatro contemporâneo, "Woyzeck"
é um dos melhores exemplos de uma linhagem de heróis negativos, impedidos de
linguagem, que constrói uma dramaturgia
do silêncio bastante familiar ao espectador
de hoje. Como os personagens de Beckett,
também o espoliado soldado de Büchner
não quer falar -ou não pode falar-, privando o interlocutor de informações exatamente por refletir uma consciência alienada, que mantém consigo a mesma relação cega que a submete aos opressores.
Em um belo ensaio do livro, Anatol Rosenfeld observa que a solidão monológica
de "Woyzeck" vem da essência niilista da
peça, sintetizada numa espécie de conto de
fadas às avessas, em que uma criança órfã
vê na lua um pedaço de pau podre e, na terra, uma vasilha entornada. É interessante
notar como esse esboço mítico da descrença é corroído por uma ácida crítica social, voltada especialmente contra as figuras do
capitão, do doutor e do tambor-mór, responsáveis pela abjeta exploração do protagonista. O abismo social que separa exploradores e oprimidos é aprofundado pelo
uso de diversos planos lingüísticos, outra
inovação de Büchner, que reproduz nos
diálogos a cantilena do saltimbanco, o
acento ídiche do judeu comerciante, o alemão oficial dos representantes do poder e
o dialeto popular falado por Woyzeck.
Ao mesmo tempo, os traços realistas do
texto são sempre ameaçados por uma turbulência expressiva que intensifica os elementos do real a ponto de torná-los irreconhecíveis, projetando visões íntimas que,
em certo sentido, antecipam as distorções
expressionistas de Wedekind e os processos absurdos de Kafka.
Procedimento semelhante já aparece em
"Lenz" (1835), obra que Büchner planejava
concluir como ensaio biográfico sobre o
autor do "Sturm und Drang" alemão e acabou finalizando como relato ficcional salpicado de transcrições do diário de Oberlin, um pastor que descreveu o estado
mental do escritor.
A passagem do registro à ficção é apontada por Guinsburg e Koudela no ótimo ensaio introdutório ao livro. Para os organizadores, em "Lenz" a análise do observador é substituída pelo olhar do narrador
que investiga a vida interior do poeta e a
percepção do doente, na tentativa de resgatar seu modo de ver o mundo. Postura
que se coaduna com as propostas estéticas
de Büchner, já evidentes em "A Morte de
Danton" e na comédia "Leonce e Lena"
(1836) e claramente expostas na fala de
Lenz : "Os poetas de quem se diz que retratam a realidade não têm a menor idéia dela, mas ainda são mais suportáveis do que
aqueles que pretendem transfigurá-la".
A denúncia do caráter abstrato do idealismo não vem, portanto, associada ao endosso integral da arte realista. O que fica
evidente no trabalho de Büchner é a recusa
em formar uma visão de mundo anterior à
experiência, como nota Heiner Müller, para quem não vemos verdades nos textos do
dramaturgo, mas acontecimentos, situações e especialmente homens com um
olhar assustado sobre a realidade.
Como a progressão das peças se dá pela
sucessão dessas visões de espanto, elas exigem uma teatralidade ágil, de perspectivas
múltiplas, muito próxima da contemporânea, em que vários pontos de fuga são capazes de projetar o painel fragmentário
onde os personagens se agitam. Talvez isso
explique por que "A Morte de Danton" e
"Woyzeck" encontrem seu público verdadeiro apenas no século 20, em encenações
antológicas, como as de Max Reinhardt e
Giorgio Strehler, ou inovadoras, como as
de Mathias Langhoff e Sérgio de Carvalho.
Sílvia Fernandes é professora de história do teatro
na Escola de Comunicações e Artes da USP e autora
de "Memória e Invenção" (Perspectiva).
Büchner - Obra Completa
384 págs., preço não-definido
Jacó Guinsburg e Ingrid Dornien Koudela
(org. e trad.). Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro
Luís Antônio, 3.025/3.035, CEP 01401-000,
SP, tel. 0/xx/11/3885-8388).
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