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ALEGRIAS DA CARNE
Rubens Figueiredo
Todo mundo adora churrasco. Qualquer bezerro sabe disso. Não é à toa que mastiga sem parar e
tritura cem vezes o capim e a ração em seus 18 estômagos. Quer inchar, crescer mais depressa, seu corpo
anseia pelo sal e pelo espeto. Na picada dos carrapatos,
prevê o cravar dos dentes e, para ele, o sol do meio-dia já
antecipa o braseiro aceso.
Era dia de churrasco. Cerveja é ouro, gelo é prata, carvão é terra e adubo. O problema, para a menina, não era
tanto a fumaceira na cara, mas pegar um a um os pedaços de carne e enfiar nos espetos. À sua volta, as bacias
cheias de carne picada: o porco gelatina, o boi polpa.
Tomar entre os dedos os nacos esponjosos, gotejantes,
dar o tranco para a ponta do espeto romper a malha da
carne e fazer o pedaço correr pelo ferro áspero. Na passagem, a gordura escurecia os pontos de ferrugem.
As fagulhas riscavam a roupa, o cabelo engordurava,
os dedos melavam, um caldo escorria pelo braço, do
punho até o cotovelo. Toda hora, ela pegava um paninho sujo para se enxugar. A menina detestava aquilo.
Torcia a cara. Vai ver, por isso mesmo faziam questão
de que ela cuidasse da carne, dos espetos, da grelha.
Ela reclamava, oferecia vantagens para primas e primos tomarem o seu lugar, mas todos riam. Parecia até
combinado. A menina tinha jeito para aquilo, diziam,
como se fosse uma brincadeira. Todos, menos um tio,
que a defendia e até se dispunha, sinceramente, a fazer o
serviço por ela. Mas era distraído, conversava demais,
não cuidava direito da carne, das brasas, e ainda por cima bastavam uns poucos goles de cerveja para ficar
tonto. Ninguém admitia a substituição. Ele chegava
perto, passava a mão na cabeça da sobrinha, alisava sua
nuca e até beijava sua testa. O hálito do tio fazia a menina virar o nariz para a fumaça. Quanto mais bebia, mais
ele lamentava a sorte da sobrinha -o que dava motivo
para mais gozação ainda- e menos capacitado ficava
para prestar qualquer ajuda.
O espeto se esforça bastante para mostrar a diferença
entre a comida e quem come. Mas do ferro para a boca a
distância não é maior do que do dente para a gengiva.
Quando faltava assunto, falavam da menina, mexiam
com ela. Um gozador, vindo por trás, fingiu que mordia
os dedos da garota e depois lambeu os beiços. Ela gritou
de susto, irritou-se. A gargalhada de todos rodopiou em
volta da churrasqueira e sacudiu a fumaça ainda mais
para o alto. O tio defensor, já trôpego, veio consolar a
menina, alisou sua mão, salivou lamentos nos lábios
moles. Logo o afastaram dali para não atrapalhar o andamento do churrasco.
Passando de uma roda de conversa para outra, o tio,
sem notar, voltou para perto da sobrinha. Estava de costas para ela e para a churrasqueira, visivelmente tonto.
O copo oscilava na mão, a cerveja às vezes escorria sobre a borda e respingava no sapato. No impulso de alguma explicação, ele perdeu um pouco do equilíbrio e
chegou a estender a mão para trás, em busca de apoio,
quase tocando na churrasqueira. Na hora em que a sobrinha ia avisar, o tio recuperou o prumo e recolheu a
mão, sem perceber o que quase tinha acontecido. A menina, livre do susto, resmungou para dentro e virou os
espetos sobre a grelha para tostar o outro lado.
Dali a pouco, uma risada estalou. Ela viu, com o canto
do olho, como o tio balançou meio fora do eixo e como
recuou meio passo para se reequilibrar. De novo ele estendeu o braço para trás e dessa vez a palma da mão
apoiou-se onde queria: um chiado de borbulhas fritou
embaixo da mão aberta, um assovio de fumaça bafejou
entre o vértice dos dedos. Por um segundo diante dos
olhos da menina.
Com a mão erguida e abanando no ar, como um penacho roxo acima das cabeças, o homem foi levado para
fora, rumo ao pronto-socorro, enquanto o abraçavam
para ele não cair. Abaixaram a música e o apetite esmoreceu. Só a menina viu, grudada no ferro da grelha, uma
fatia de pele do tamanho de uma moeda. Aos poucos,
tostava, encolhia e pelo menos duas gotas escorreram
dali e explodiram com um suspiro sobre as brasas. Logo
era apenas um pedaço de carvão, indistinguível do ferro
negro.
A menina virou as carnes na grelha. Enfiou cuidadosamente nos espetos asas de frango geladas, gotejantes.
As abas da pele de frango pendiam trêmulas nos seus
dedos, com as pontinhas arrepiadas de onde haviam
extirpado as penas. Ela borrifou as brasas com sebo para avivar o calor e o crepitar vermelho, lá no fundo, subiu acompanhado de um desafogo de fumaça. Em pouco tempo, o churrasco se reanimou. Ouro e prata, terra
e adubo. E a voz da menina de vez em quando corria pelo pátio:
Alguém quer mais carne? Está sobrando.
Rubens Figueiredo é escritor, autor de "Barco a Seco" (Companhia
das Letras) e "Essa Maldita Farinha" (Record), entre outros.
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