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Em "O Instinto da Linguagem", o pesquisador e discípulo de Chomsky
Steven Pinker defende que as estruturas gramaticais têm bases biológicas
A seleção natural da sintaxe
João de Fernandes Teixeira
especial para a Folha
Falar sobre linguagem pode se tornar uma tarefa bastante estranha. Afinal de contas, estamos confinados na nossa própria linguagem e
não podemos falar dela a não ser usando-a, ou seja, falar sobre como ela funciona já a pressupõe. Tentar traçar suas
origens, isto é, contar a história de sua
aparição também só pode ser feito por
alguém que já possua alguma linguagem. Usar a linguagem para falar dela ou
montar uma história de suas origens pode tornar-se apenas um exercício de
imaginação, pois a sua aparição não foi
precedida por nenhum tipo de fóssil linguístico ou pré-linguístico que pudéssemos um dia descobrir. Tudo se passa como se estivéssemos num pequeno bote
em alto-mar, sem poder desmontá-lo
para saber como foi construído.
Falar das origens da linguagem e de como ela funciona é a tarefa a que se propõe Steven Pinker neste livro que acaba
de ser editado no Brasil. O autor é um jovem pesquisador do departamento de
ciência cognitiva e neurociência do MIT
(Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Um homem que impressiona por
seu trajar quase sempre em negro e pelos
cabelos armados, o que lhe confere por
vezes um ar de príncipe russo. Isso sem
falar de sua eloquência, também impressionante, que tive oportunidade de presenciar numa palestra na Universidade
Harvard em 1998. Pinker foi discípulo de
seu colega no MIT, Noam Chomsky, esse
Galileu da linguística, hoje mais conhecido por suas opiniões irreverentes acerca
da sociedade globalizada. E, como bom
discípulo, soube manter sua independência intelectual, discordando do mestre em alguns pontos cruciais.
O grande mérito de Chomsky foi mostrar que os processos pelos quais geramos e identificamos sentenças têm uma
estrutura profunda, a estrutura de uma
árvore, com seu tronco e ramos, e que
gerar sentenças não é apenas alinhar
sons ou símbolos. Seu livro clássico, "Estruturas Sintáticas", publicado em 1957,
investiga a natureza dessas estruturas,
analisando os possíveis algoritmos para
gerar e reconhecer sentenças nas linguagens naturais. Chomsky nunca se arriscou a identificar essas estruturas com algum tipo de circuito cerebral, limitando-se apenas a sugerir que elas seriam, de alguma forma, inatas.
Pinker concorda com o inatismo de
Chomsky, mas, contra o mestre, sustenta
que a investigação da natureza da linguagem não pode se limitar a uma análise de
estruturas e sistemas formais. A gramática é um sistema normativo, mas deve ser
vista como um fenômeno natural, biológico. A linguagem é um produto da evolução, um fator decisivo que nos diferencia de todos os outros seres vivos. Possuímos essas estruturas inatas ou essa gramática universal, e esta está no nosso cérebro, sendo o resultado de um longo
processo evolucionário ao qual a espécie
humana esteve submetida. Nossa faculdade linguística -ou as estruturas da
gramática universal- é, para usar os
termos de Pinker, "instintiva": nossa linguagem é
essencialmente um instinto de nossa espécie.
"Sabemos falar da mesma
maneira que as aranhas
sabem tecer suas teias"
(pág. 10). Ou, para invocar ainda outra passagem,
Pinker nos diz que "a sintaxe é um órgão darwiniano, extremamente perfeito e complicado" (pág. 148).
Neste sentido, ele teria dado um passo
além de seu mestre, ao fazer considerações acerca da origem e da razão de ser
dessas estruturas que os linguistas têm
copiosamente se dedicado a descrever,
valendo-se de uma explicação através
dos processos de seleção natural.
Tais afirmações -em que pese serem
corretas ou não- têm o mérito de ressaltar a necessidade da linguística se tornar, cada vez mais, uma investigação interdisciplinar. Uma ciência da linguagem tem de se situar no cruzamento entre psicologia, neurociência, biologia
evolucionária e a própria teoria linguística. A ciência da linguagem não pode se
limitar a ser uma análise empírico-formal das estruturas profundas subjacentes aos fenômenos linguísticos. Ou seja, é
preciso retomar a conhecida sentença de Roman
Jakobson (1896-1982),
que dizia que o trabalho
do linguista não pode
nem deve ser alheio às investigações que se realizam em todas as suas
áreas afins. Algo que soa
hoje como um eufemismo, mas que ainda encontra muita resistência em alguns meios acadêmicos de
orientação chomskiana. Uma situação
quase paradoxal, se considerarmos que
Chomsky é frequentemente lembrado
como um dos pais da ciência cognitiva,
um empreendimento científico que, nas
últimas décadas, caracterizou-se como
essencialmente interdisciplinar.
Outro mérito de Pinker é o fato de seu
texto proporcionar ao leitor universitário uma visão geral da linguística, além
de uma introdução a tópicos importantes da ciência cognitiva e da biologia evolucionária. Usando um estilo coloquial,
Pinker nos arrasta por essa aventura fascinante, percorrendo temas como a gramática gerativa, léxico, morfologia, fonética e outros. Há também capítulos acerca da aquisição da linguagem, suas bases
biológicas (genética e ontogenética) e
sua evolução. O capítulo sete ("Cabeças
Falantes"), que discute a possibilidade de
automatizar alguns aspectos da linguagem natural, é particularmente instigante para aqueles que se interessam por inteligência artificial e suas possíveis aplicações na área de processamento linguístico.
Resta saber se podemos concordar integralmente com as teses de Pinker. Terá
ele, ao tentar naturalizar a teoria de
Chomsky -mesclando-a com teoria da
evolução e seleção natural-, dado um
passo além no sentido de desvendar a
origem de nossas faculdades linguísticas? O que terá surgido primeiro, a linguagem ou a evolução? Seria possível
formular algo como a teoria da evolução
sem usar algum tipo de linguagem? Não
estaríamos andando em círculos ao afirmar que a evolução selecionou a linguagem e que, ao mesmo tempo, foi a partir
da linguagem que pudemos falar de evolução? Pois não será a teoria evolucionária apenas uma grande e genial metáfora
a partir da qual pudemos organizar e
buscar alguma compreensão de nosso
possível passado filogenético? Esta parece ser uma pergunta inevitável a ser formulada para aqueles que lêem este livro
com olhos filosóficos.
João de Fernandes Teixeira é doutor pela Universidade de Sussex (Inglaterra), professor da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Mente, Cérebro e Cognição" (ed. Vozes), entre outros.
O Instinto da Linguagem
628 págs., R$ 48,00
de Steven Pinker. Trad. Claudia
Berliner. Editora Martins Fontes
(r. Conselheiro Ramalho, 330/
340, CEP 01325-000, SP, tel. 0/
xx/11/ 3241-3677).
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