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+ conto
Valêncio Xavier
MEU NOME É JOSÉ
Eu já fui um saco de coisas na vida, coisas para até
Deus duvidar. Até Pai de Santo já fui. Na minha
iniciação para Pai de Santo fiquei isolado 90 dias
na camarinha: o Quarto de Santo, quarto pequeno, fechado, sem móveis, só folhas no chão, que eram a
minha cama, e em cada folha estava a alma de um orixá.
Eu usava o quilé, que é um colar lavado com sangue dos
animais sacrificados para os orixás: um carneiro, calçado em cada pata com um frango branco. Um cágado
calçado nas patas com quatro frangos de pernas brancas. E um animal silvestre, uma tiriva para Osanhe, orixá dos encantamentos da mata.
Comigo na camarinha, só a cabeça, as patas, o couro e
os órgãos genitais de cada animal. Eu só comia sardinha
e arroz sem sal. Passados 21 dias, a Mãe de Santo entra e
me avisa que os orixás estavam pedindo comida. Então
não ia mais sobrar para mim, e eu tive de ficar comendo
restos dos animais, tudo podre fedendo, cheios de vermes que os orixás chamam de flores. Eu tinha nojo de
comer aquilo, então os orixás se incorporaram em mim
e eu passei a comer.
Como aqueles testes para daltônicos que a gente faz
no Detran para tirar a carteira de motorista, meus sonhos/visões se montavam em bolas coloridas formando
homens e mulheres gigantes que não dava para distinguir os rostos. Estavam em aldeias incendiando, eu ouvia o crepitar do fogo, o ranger dos dentes, os gemidos.
Eu não via, sentia aqueles horrores, o que é bem pior do
que ver. Tudo isso nos meus sonhos na camarinha.
Dormir sem sobressaltos é o sonho do homem. Mas eu
sempre digo que só o Deus Verdadeiro conhece esse segredo. É como está no Salmo 4.9: Em paz também me
deitarei e dormirei, porque só vós Senhor me fazeis habitar em segurança.
Eu dormia pouco, porque às três da madrugada, hora
de Xangô, me acordavam e eu ia nu para o pátio e enterrado até a boca dum pote de barro tinha que tomar banho de ervas, Abô. Vinte e uma ervas maceradas postas
na água, uma para cada orixá que trabalhava comigo.
Depois de sair da camarinha, eu tive de trabalhar no
centro onde fui feito santo, porque na época eu não tinha dinheiro para pagar o custo da iniciação. Fiquei devendo. Às vezes eu fazia algum biscate fora e conseguia
algum dinheirinho para passar melhor.
Passaram dois anos e aquilo tudo foi me enchendo, e
eu tinha medo de sair dali e acontecer coisa ruim em
mim. Os demônios me apareciam em sonhos, eram
iguais a pessoas normais, mas tinham pé de cabra. Me
ameaçavam e eu acordava doído como me tivessem batido, durante a noite toda.
Um dia eu estava indo de ônibus para a cidade. Era
naqueles dias de congestionamento infernal no trânsito, fiquei umas duas horas dentro do ônibus. Do meu
lado estava sentada uma pretinha bonitinha. Puxei conversa com ela, não tinha outra coisa que fazer, naquele
tempão parado.
Falamos de tudo; do congestionamento e o mais. Que
ela ia chegar atrasada na loja de saldos em que ela trabalhava; o patrão era capaz de cortar o dia. Quando eu disse o que fazia, ela baixou a cabeça e ficou algum tempo
quieta. E eu só olhava para ela pensativa, cabeça baixa.
Teve um momento que uma gota d'água pingou dos
olhos dela. Estava chorando? Não sei, deixei de olhar, fiquei olhando pela janela o trânsito parado...
Para encurtar a história, quando o ônibus chegou no
ponto na cidade, já descemos de mãos dadas, e sorriso
nos lábios. O sorriso dela é coisa tão bonita! O nome dela é Maria. Nos beijamos ali mesmo na rua, todo mundo
olhando.
Teve uma hora, quando ainda estávamos no ônibus
paradão, depois do choro, é que eu contei tudo da minha vida, e lá no centro o que era eu, e não sabia mais o
que ser. Ela ficou um tempo pensando, depois falou que
eu tinha que largar de lá, daquele atraso de vida, largar
daquele lugar de horrores, esquecer daqueles demônios
dos sonhos e de novo voltar a sonhar e a viver a vida.
Na verdade meus sonhos estavam realizados. Tinha
uma mulher que me amava e que eu amava. Não foi fácil, mas arrumei um trabalho de frentista, num posto de
gasolina, bem pertinho da casa dela. A gente passou a
dormir junto, logo que tudo tiver engrenado vamos nos
casar.
Deixei de sonhar com demônios. Agora eu só sonho
com nosso filho que na barriga da Maria está para nascer. O nome dele vai ser Emanoel.
Valêncio Xavier é escritor, autor de, entre outros, "Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentido" (Cia. das Letras).
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