São Paulo, domingo, 26 de maio de 2002 |
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+ livros Reedição de "Thérèse Desqueyroux" traz de volta o c atolicismo torturado de François Mauriac A natureza avariada
José Maria Cançado
François Mauriac (1885-1970) chamou para si um trabalho difícil.
Católico irredutível, embora não
do tipo auto-satisfeito, rangendo
sob o jansenismo moralista da burguesia
francesa da província, impregnado pela
paisagem física e moral da lande da região da Gironda, com sua resina, pinheiros, bruma, javalis, e o silêncio geral, o
natural e o empilhado dentro das pessoas, teve como único assunto a realidade e o "mistério miserável" do pecado.
Mas era também romancista, um artífice
portanto não da condenação, mas de
uma liberdade que apenas balbucia, e
cria, mesmo sem nenhuma fortuna e
chance pela frente, "o poder de dizer não
à lei que a esmaga" (como disse sobre a
personagem que dá nome a este romance, Thérèse Desqueyroux).
Em universos assim, o dizer não à lei que esmaga parece só poder ser vislumbrado, num átimo, no repertório da queda ou do pecado. O de Thérèse foi tentar, tão engenhosa quanto sonambulamente, envenenar o marido, um arranjo de carne e de tirania da opinião na sua máxima e doméstica concentração, buraco negro antropomorfizado e conjugal das landes, que a via "como uma vara de parreira", na qual "só contava o fruto preso às minhas entranhas". Difícil saber se é uma força ou uma fraqueza Mauriac tomar a vida e o gesto da sua personagem como natureza; tanto a toma assim que não cora ao escrever num romance de continuação deste, já sobre a vida de Thérèse em Paris -"Fin de la Nuit" ("Fim da Noite"), de 1935-, que "quando passava, as pessoas se voltavam para ela", pois ali se revelava "antes de tudo um animal hediondo". Talvez seja uma força, pois Mauriac não pode oferecer o que não tem: a compreensão da vida e do estranhamento da sua personagem fora da lande moral dele mesmo. Por causa disso, Sartre, no ensaio famoso publicado em "Situações 1" ("Mauriac e a Liberdade"), afirmou que François Mauriac, como Deus, também não "era artista" -e que escolhera "a si próprio como sistema de referências". É verdade: Thérèse não é para François Mauriac (e mesmo as outras mulheres) um vir-a-ser. É a encarnação (palpitante, sensível, de uma complexidade atônita) do que ele toma como uma queda. Mas é assim mesmo, sem as mediações da vida do social (que existem e estão lá, mas parecem chupadas pela areia úmida da prosa do autor e pelo pântano que é existir para ele), feito uma imolação e auto-imolação a irem até o fim -e sem dar muita coisa pela liberdade futura da sua personagem-, que François Mauriac aproxima Thérèse de nós. Mesmo que a veja como "um animal" hediondo, ele a aproxima, não a afasta de nós. Não há degredo possível para Thérèse, mesmo condenada. É essa contradição escandalosa e explosiva que faz a grandeza indiscutível da arte romanesca de François Mauriac. A explicação talvez esteja na própria natureza do romance, essa forma de acontecer o que só nele poderia acontecer. Sartre não tinha razão. José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu" (ed. Scritta). Thérèse Desqueyroux 188 págs., R$ 33,00 de François Mauriac. Trad. Carlos Drummond de Andrade. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/xx/11/ 3218-1444). Texto Anterior: Conto faz parte de série de textos literários Próximo Texto: Lançametos Índice |
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