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Ponto de fuga
Os fios da teia
Jorge Coli
Existem, no cinema de Sam Raimi, aglutinações, intimidades silenciosas. Elas não se explicitam pela narração imaginativa nem pela habilidade técnica. Dizer, por
exemplo, "Sam Raimi sabe filmar a paisagem" é muito
pouco, porque não está apenas em jogo o visível. "A
Morte do Demônio" (1982) não mostrava demônio nenhum, ao contrário do que sugere o título do filme no
Brasil. Sam Raimi captava o Mal, um mal sem rosto, habitante da noite, das folhas, do vento. Em "O Dom da
Premonição" (2000), árvores enormes, com suas estranhas raízes que se infiltravam num pântano, faziam
sentir a circulação de forças secretas que escapam ao
entendimento lógico. "Um Plano Simples" insistia nas
paisagens de neve; mais o branco se impunha, mais ele
se carregava de remorsos e crimes. São frutos de uma
intuição inventiva que não se aprende no colégio.
Seu novo filme, "Spiderman" ("Homem-Aranha"),
faz pulsar uma Nova York vertical, cujas paredes, cujas
pontes metálicas, cujas avenidas, formando desfiladeiros retilíneos, são habitadas por alma orgânica e imóvel.
Ela se torna o habitat do homem-inseto. Os ataques
abrem feridas; um prédio atingido é como um corpo
que desmorona. Distante da metáfora urbana de Gotham City, Sam Raimi parte do quotidiano, do verossímil e, ao progredir rumo à fantasia, evita as rupturas,
mantendo seus poderes de convicção. Os personagens e
a história do filme afinam-se com a invenção de Stan
Lee nos quadrinhos, afastando-se das convenções criadas nos gibis mais antigos, e são acrescidos de uma verdade própria ao cinema.
Urdir - Os personagens de Sam Raimi são tomados por
forças contraditórias, que se revelam pouco a pouco,
menos em repentes dramáticos que em gestos ou falas
banais. Nesse sentido, Raimi é avesso ao melodrama:
basta imaginar que filme diferente não seria "Homem-Aranha" se confiado a James Cameron, que esteve envolvido com o início do projeto. Raimi leva as contradições interiores a se aguçarem conforme cada um expande suas relações com os outros.
O mais solitário de todos é Norman Osborn. Por isso
mesmo, desdobra-se em três para projetar seus conflitos: ele é o empresário; ele é um duplo maligno, com
quem dialoga no espelho; ele é o Green Goblin (Duende
Verde). É como se o dr. Jeckyll tivesse dois mr. Hyde;
um para uso interno, outro pondo máscara para sair e
cometer maldades. A feiúra expressiva de Willem Dafoe, que encarna o personagem, é dolorosa, esvaindo-se
em cansaço. Diferentemente de "Titanic", também o
amor, em "Homem-Aranha", não é unívoco nem exaltado. É calmo nas suas certezas e fragilidades, complexo
nos seus desacertos, dele emanando diálogos cuja espantosa qualidade poética destoaria em qualquer outro filme de aventura.
Nó - A bandeira americana, no final de "Homem-Aranha", e os desabamentos de prédios remetem, sem dúvida, ao trauma do dia 11 de setembro passado. É verdade que o filme já estava sendo feito e que imagens do
World Trade Center foram eliminadas dele. Mas Sam
Raimi, na verdade, fala de outra coisa. Ele insiste na responsabilidade esquecida pelos poderosos: assim, o superpaís que inventou os super-heróis deveria ser o mais
responsável de todos. Raimi configura inimigos e os
dispõe em hierarquia: o dinheiro está em cima, submetendo e aliando-se à ciência e ao Exército. Trata-se de
uma corrupção interior pela riqueza, no avesso da moral protestante.
Essa obsessão já surgira, insistente, em outras obras
do diretor: a fortuna ambicionada traz poderes deletérios e maléficos. Menos até: uma simples transação, um
banal pagamento, envolvendo notas e moedas, parecem ocultar sempre algo de doentio e de asqueroso.
Fios - As facetas sombrias de "Homem-Aranha" não
diminuem o contágio de sua euforia. Nenhum outro super-herói recebeu um beijo tão sensual de sua amada
nem saboreou, com tanto prazer, seus poderes extraordinários. Melhor ainda, ele os compartilha. O gênio de
Sam Raimi que transparece em todos os seus filmes
propulsa o público para dentro das cenas.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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