|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Tribunal de divórcios, 3 de novembro [de 1909]
A curiosidade me levou ao tribunal de divórcios
quando li sobre um pastor de credo tão carola
que trazia a religião à sua vida mais íntima. A
coisa parecia séria: ele forçava sua inimiga a rezar com ele.
Entretanto admito que, no começo, parecia que eu estava assistindo a uma sessão de tortura. O homem ficou
de pé à nossa frente e foi forçado a descrever suas relações com a mulher. Era a natureza humana prestando
contas à natureza humana. Nós estávamos ali para julgar. Felizmente, era óbvio que o sujeito se apoiava em
uma espécie de formalismo (1); de modo que suas declarações não foram tão íntimas e portanto dolorosas
quanto podiam ter sido. Arrogou para si a posição de
marido ideal, a quem cabe ensinar, perdoar e ajudar a
metade mais fraca.
Ele pronunciou a verdade literal e a reforçou com juramentos. Cuidara de nunca pecar: ao mesmo tempo,
não era nada maleável. Sua mulher se entediava; a despeito de seus próprios escrúpulos, ele fizera questão de
mandá-la ao teatro; andava muito ocupado com seus
deveres paroquiais, pregando o tempo todo, exaurido.
Ela caíra nas mãos da srta. Lewis, que lhe revelara como
ela era mal compreendida. "Essa palavra terrível, mal
compreendida", disse o reitor (2) com algum prazer, ao
constatar como seus apuros eram convencionais. A
srta. Lewis estava sentada perto de mim. Tinha um rosto ousado, vulgar, marcado pela tensão de afrontar o
mundo. Era um rosto envelhecido e sem alegria; mas
talvez não tivesse nem 40 anos.
A intenção dela consistira apenas em absorver por inteiro a sra. Whittingstall; não havia visado o dinheiro.
Destruíra o casamento deles com o golpe mais baixo. A
sra. W. era uma mulher miúda e histérica, dada a mimar a própria saúde, irritadiça por temperamento; ainda assim, uma senhora de classe e (talvez) não inteiramente à vontade com sua amiga grandalhona e vulgar;
mas a srta. Lewis era determinada. O sr. Whittingstall
estava certo, como sempre; a sra. W. desesperava-se
que ninguém visse a crueldade
que isso implicava. Era um pesadelo para ela. A sra. Lewis, uma ou
duas amigas e uma enfermeira
eram as únicas pessoas que viam:
todo o mundo masculino estava
contra ela.
Ninguém duvidaria do homem
que se lembrava de todas as datas;
era escrupuloso o bastante para
confessar seu próprio temperamento esquentado e contudo tentara controlá-lo à força de oração e
silêncio; que dizia de saída como "adorava" sua mulher,
mas cuja condição de pastor da Igreja da Inglaterra estava acima disso; que visivelmente havia sofrido e agira
corretamente, até onde se podia ver.
Ele merecia crédito; mas sua fala também esclarecia o
outro lado. Era um homem sem piedade ou imaginação; um formalista e, talvez, um egoísta. Além do mais,
a religião o absorvia. A religião tinha muito a ver com o
caso, pensei eu. E ele se preocupava com o que os paroquianos pensariam dele.
Ela certamente era a menos convencional dos dois;
ainda que a mais injusta. Ele obviamente se consolava
com a defesa de seu próprio caráter e com a consciência
de que agira corretamente e falara a verdade. É de suspeitar que ela vá chapinhar por algum tempo; haverá
desilusão quando a srta. Lewis desertá-la por outra mulher; e então ela retornará, será recebida com a devida
caridade cristã; e receberá alguma penitência para o resto da vida.
Duas coisas me impressionaram: uma foi o modo como ele disse: "O senhor pode mesmo me perguntar, sir
Edward, se ao longo de uma vida em comum de 14 anos
eu alguma vez cuidei de minha mulher quando ela chorava?". Isso deixava entrever uma vida em comum de
verdade, essa espécie de relação enfadonha e genuína;
os seres humanos tão reais, confortando um ao outro,
depois de terem puído todo o disfarce, e ambos tão vergados. Os dois sofrendo.
A outra coisa foi o relato que ele fez de uma discussão
acalorada com a mulher em que ele ergueu um crucifixo para "solenizar a cena"; ela chamou aquilo de sacrilégio, ao que ele empunhou um candelabro de cerâmica e
brincou com ele, "como se brinca com uma caneta ou
um lápis". O candelabro era dela, de modo que ele teve
que largá-lo quando ela pediu; mas havia um globo de
cerâmica que era dele, e então ele ficou brincando com
o globo, e ela não teve como fazê-lo largar. O estranho é
que isso ocupasse a atenção dos dois naquele momento;
e que os dois tivessem reconhecido a quem pertenciam
o candelabro e o globo.
Notas do tradutor
1. "Formalismo", no caso, tem sentido específico: do ponto de vista
ético, importa apenas a conformidade de um ato à forma da lei
moral, pouco importando as consequências que acarreta ou a
intenção que o guiou.
2. Na Inglaterra, eclesiástico encarregado da administração de uma
paróquia inteira.
Copyright: The Estate of Virginia Woolf.
Texto Anterior: Virginia Woolf secreta Próximo Texto: Casa de Carlyle, 24 de fevereiro [de 1909] Índice
|