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+ brasil 504 d.C.
Eleição de Arnold Schwarzenegger neutraliza a luta pelo poder e impede
o desvendamento da realidade social
A negação da política
José Arthur Giannotti
Não é à toa que se escreveram milhares de páginas a respeito
da vitória do ator Arnold Schwarzenegger nas eleições para o governo do Estado da Califórnia. No final das contas, não exemplifica de forma mais ostensiva um dos modos de fazer política numa sociedade do espetáculo? Nos dias de hoje, quase tudo o que é precisa aparecer como se estivesse sendo encenado, e a política, considerada desde os gregos uma das formas do aparecer, se converte num momento muito particular do grande palco em que se converteu a televisão mundial. Não é de menosprezar o fato de que o mundo nos aparece primeiramente como tudo aquilo que a televisão nos é capaz de dizer. O que é o "reality show" senão a demonstração de que até mesmo uma situação concreta e vivida pode ser
apresentada como se fosse momento de ficção?
O noticiário mostra ao vivo um atentado ou uma batida da polícia como se fossem janelas para o mundo, mas nenhum desses fatos teria sentido histórico-social
se não fosse dito, comentado, filmado, enfim, traduzido pelas linguagens da mídia. E, dentre elas, não é a televisiva que tende a dar a pauta para todas as outras?
Imperialismo da imagem
Tudo se
passa como se houvesse uma inversão na
maneira pela qual a palavra se relaciona
com seu significado referente, porquanto o fato somente ganha sentido social à
medida que aparece como aquilo que a
imagem mostra. Bem sei que a linguagem configura o mundo, que as cores
existem, por exemplo, como percepções
diferenciadas, à medida que são ditas segundo uma escala, que pode ir da mais
simples, como aquela que separa segundo o branco, o preto e o cinza, até as mais
complexas, capazes de dizer os matizes
mais sutis. Isso no nível da lógica do sensível, pois essa questão fica aquém da linguagem e da prática científica, que transforma as diferentes cores em diferentes
comprimentos de onda.
Mas o mundo, convertido no referente
da imagem televisionada, tende a se
apresentar mediante aquele travejamento determinado pelas técnicas e pela linguagem desse meio. Tudo se passa como
se fosse forma de produção midiática.
Mais do que uma sociedade do espetáculo, porém, não vivemos transpassando
uma teia de imagens posta a serviço de
determinados poderes globalizantes?
Não há dúvida de que esse imperialismo da imagem é contrabalançado por
outros recursos de informação, pelo modo por que nós mesmos percebemos
e pensamos as coisas, pela diversidade
do que é dito pelos outros meios, pelas
contradições que eles nos mostram e assim por diante. Mas a televisão se tornou
objeto tão familiar, tão presente nos momentos mais diversos de nossas vidas,
que tende a dominar os modos reflexivos
de nosso estar no mundo.
O Estado sempre procurou exercer, de
forma mais rígida ou mais branda, o
controle da opinião pública. Mas é sintomático que, salvo engano meu, tenham
sido os militares os primeiros a compreender a necessidade de formatar sistematicamente a imagem da guerra. Não
poderiam deixar a mídia, particularmente a televisão, trabalhar segundo
suas leis próprias, seja determinando o
evento segundo as condições e potencialidades de seu meio específico, seja conformando a notícia para vir a ser boa
mercadoria.
A guerra, transformada em espetáculo,
desenrolando-se na sala de visita como
se fosse um jogo, ainda conserva seu lado
de horror e assim pode servir de base a
movimentos pacifistas. Não é o que
aconteceu na Guerra do Vietnã? Depois
dela ficou evidente a necessidade de evitar a todo custo que a televisão mostre os
horrores da "guerra limpa". O massacre
da população civil poreja pela imagem
composta. Daí o acordo entre o complexo militar e o Estado com as grandes cadeias de televisão, sempre carentes de
grandes subsídios. Não foi possível montar a invasão do Iraque como se fosse
narrativa épica? Em outras palavras, como uma ficção, desprovida de dimensão
declarativa.
Os partidos políticos logo trataram de
seguir por esses caminhos, associando-se aos monopólios da mídia já constituídos, comprando produtores e espaço na
televisão. É natural que, procurando novas aberturas, se interessem por aqueles
que já possuem capital televisivo. Quantas vezes já tramaram fazer de Silvio Santos ou de outras figuras conhecidas candidato ao governo do Estado e, até mesmo, à Presidência da República?
Esse processo é diferente do que acontece quando um profissional da mídia
ingressa na política, pois então ele se prepara para o exercício do poder, fazendo
alianças, configurando adversários e, sobretudo, aprendendo a negociar. O personagem televisivo, ao contrário, vem jejuno para a arte da política, principalmente porque suas alianças são eventuais, configurando-se no processo das
eleições. Não se estabelece entre ele e o
partido um jogo de má-fé, pelo qual um
imagina servir-se do outro fora do travejamento propriamente partidário? O
principal é ganhar as eleições, depois, para governar, cada um imagina poder
controlar o outro.
Ora, esse recurso de apelar para um
ator fora do jogo partidário nega a política em dois planos. Em primeiro lugar,
aumenta o grau de imprevisão do processo de governar, pois um amador ascende a uma posição de mando sem preparo para decidir sobre questões complexas e incapaz de escolher auxiliares
dos quais não pode fazer uma avaliação
correta. Em segundo lugar, e esse me parece o lado mais perigoso, o ator, transformado em líder, termina impondo à
política um viés autoritário, negando o
jogo entre aliados e adversários para dela
fazer processo de concessão de autoridade para "salvar" o país.
Até que ponto esse recurso a um personagem configurado num meio diferente
da própria política altera suas práticas?
Ela sempre foi o lugar da palavra. Até
mesmo na guerra os generais costumavam arengar suas tropas. É bem verdade
que as transmissões radiofônicas, ainda
no domínio da palavra, passaram a fazer
parte da vida cotidiana do político, e até
mesmo presidentes da República costumam manter programas periódicos nos
quais encenam um diálogo com a população. Mas o rádio compete em faixa própria, mantém com seu público certo
grau de intimidade, tendendo, por isso, a
ser regional. É sintomático que os radialistas sejam incentivados a chegar, no
máximo, à condição de deputado federal. Se Anthony Garotinho [atual secretário de Segurança Pública do Estado do
Rio] veio do rádio, ele se configurou como político pelo jogo da própria política.
Estetização da política
Somente a
televisão, principalmente nos períodos
eleitorais, desenha a figura do político na
sua plena generalidade, só ela faz de sua
imagem algo mais denso do que sua própria pessoa. Desde os tempos da democracia ateniense, sabemos que a política
está ligada a um balanço de aparências, o
político se dirigindo à ágora mais para
convencer do que para depurar a verdade. Nos momentos de crise, o poder podia ser delegado a um ditador, mas sempre com poderes definidos e por tempo
determinado. Que a história esteja pontuada de aventureiros que assumem o
poder, conquistam o apoio do povo e governam a seu bel-prazer é sabido de todos. Mas foi com o fascismo e com o nazismo, como observa Walter Benjamin,
que a política foi estetizada, justamente
para encobrir a violência que o totalitarismo foi capaz de desencadear. A estetização contemporânea, entretanto, vai
além. De um lado, porque é kitsch, de
outro, porque transforma o líder num
fantoche, fantasiado de santo salvador. É
possível dizer tudo de Hitler e de Stálin
-Mussolini é figura duvidosa-, menos
que não eram personalidades carismáticas e poderosas, capazes de realizar, por
conta própria, o mal que fizeram.
Que mal ou bem pode implementar
Arnold Schwarzenegger? O da incúria, a
neutralização do jogo político, isto é, dessa luta pelo poder que aos poucos poderia desvendar aspectos do real, mas que
cada partido tenta agora enquadrar num
único molde para poder transformá-lo a
seu modo. Schwarzenegger condensa
numa imagem toda essa diversidade, nega o jogo, vale dizer, a negociação paciente, a mudança de aspecto, o risco e as
zonas de indefinição. A prática política é
substituída por uma aparência de prática, embora sob essa aparência continue a
velha luta partidária, agora truncada, porém, de suas relações com seus públicos
diversos, tornando-se expressão única
de um poder anônimo e sem rosto. À
concentração da diversidade dos aspectos do jogo político num ator transformado em imagem corresponde o fortalecimento de um poder que nega a diversidade, pretende aparecer como o bem
contra o mal.
Ao dirigir-se a uma população indiscriminada, alinhavada numa figura imprecisa graças a sua reificação na imagem do ator-político, esse poder visa,
sem aglutinar a população numa praça,
sem fazer com que marche como se fosse
um exército, a mobilizá-la na sua multiplicidade e dispersão, para que não se
constitua como tal, para que não aja a
não ser para dizer sim.
Os grupos diferenciados se tornam
neutros conforme se identificam a uma
imagem neutra, pensada, porém, como
se fosse dotada de poderes sobrenaturais. Estetização kitsch que, em vez de
servir de véu de uma violência que se esconde, serve de pano de fundo para o
exercício de um poder que não legitima o
adversário. Poder total, mas virtualmente invisível, já que trata de ser exercido por um fantoche.
José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap
(Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).
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