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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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EXCESSO E CARÊNCIA DE DEMOCRACIA

por Slavoj Zizek

"Democracia" não é simplesmente o "poder do, pelo e para o povo"; não basta afirmar que na democracia a vontade e os interesses (os dois de modo nenhum coincidem automaticamente) da grande maioria determinam as decisões de Estado. Democracia -da maneira como o termo é usado hoje- envolve sobretudo o legalismo formal: sua definição mínima é o cumprimento incondicional de certo conjunto de regras formais que garantem que os antagonismos sejam totalmente absorvidos no jogo agonístico. "Democracia" significa que, seja qual for a manipulação eleitoral que ocorra, cada agente político respeitará incondicionalmente os resultados. Nesse sentido, as eleições presidenciais nos Estados Unidos em 2000 foram efetivamente "democráticas": apesar das óbvias manipulações eleitorais e da patente insignificância do fato de que algumas centenas de votos da Flórida decidiram quem seria o presidente, o candidato democrata aceitou sua derrota.

Comentário amargo
Nas semanas de incerteza após as eleições, Bill Clinton fez um comentário apropriadamente amargo: "O povo americano falou; apenas não sabemos o que ele disse". Esse comentário deveria ser levado mais a sério do que ele mesmo pretendia: ainda hoje não sabemos -e, talvez, porque não houvesse nenhuma "mensagem" substancial por trás do resultado. É nesse sentido que deveríamos interpretar a democracia problemática: por que deveria a esquerda sempre e incondicionalmente respeitar as "regras do jogo" da democracia formal? Por que não deveria, pelo menos em certas circunstâncias, questionar a legitimidade do resultado de um processo democrático?


Por que deveria a esquerda sempre e incondicionalmente respeitar as "regras do jogo" da democracia formal?


De modo interessante, há pelo menos um caso em que os próprios democratas formais (ou pelo menos uma parte substancial deles) tolerariam a suspensão da democracia: e se as eleições formalmente livres forem vencidas por um partido antidemocrático cuja plataforma prometa a abolição da democracia formal? (Isso de fato aconteceu na Argélia alguns anos atrás, entre outros lugares, e há uma situação semelhante no Paquistão hoje.) Nesse caso, muitos democratas admitiriam que a população ainda não está "madura" o suficiente para ter acesso à democracia e que é preferível algum tipo de despotismo esclarecido, cujo objetivo será educar a maioria para ser adequadamente democrata. Essa suspensão estratégica da democracia está atingindo novos cumes hoje. Os EUA exerceram uma tremenda pressão sobre a Turquia, onde, segundo pesquisas de opinião, 94% da população era contra a presença de tropas americanas para a guerra contra o Iraque -onde está a democracia? Todo velho esquerdista lembra a resposta de Marx no "Manifesto Comunista" aos críticos que censuravam os comunistas por pretenderem minar a família, a propriedade etc.: é a própria ordem capitalista com sua dinâmica econômica que está destruindo a ordem familiar tradicional (incidentalmente, um fato mais verdadeiro hoje que na época de Marx), assim como expropriando a grande maioria da população. Na mesma linha, não são exatamente aqueles que hoje posam como defensores globais da democracia que a estão efetivamente minando? Em uma perversa distorção retórica, quando líderes favoráveis à guerra são confrontados com o fato brutal de que sua política está fora de sintonia com a maioria da população, eles recorrem à sabedoria comum de que "um verdadeiro líder lidera, não segue" -isso vindo de líderes normalmente obcecados por pesquisas de opinião... Quando os políticos começam a justificar diretamente suas decisões em termos éticos, podemos ter certeza de que a ética é mobilizada para encobrir alguma perspectiva sombria e ameaçadora. É a própria inflação de retórica ética abstrata nas recentes declarações públicas de George W. Bush (do tipo "O mundo tem coragem para agir contra o mal ou não?") que manifesta a total pobreza ética da posição americana -a função da referência ética aqui é simplesmente mistificadora, serve apenas para mascarar os verdadeiros interesses políticos (que não são difíceis de discernir).

Paciente em diálise
Para identificar esses interesses, basta lembrar como a linha-dura da geopolítica gosta de comparar a atual situação dos EUA à de um paciente em diálise: o "modo de vida" americano em todos os seus aspectos, incluindo os ideológicos, depende crucialmente da disponibilidade de uma certa quantidade mínima de suprimento de petróleo, da qual apenas um terço pode ser fornecido pelos EUA. Os Estados Unidos são portanto como um paciente em diálise cuja sobrevivência depende do influxo de petróleo controlado principalmente pela população muçulmana, que é antagônica aos valores e ao poderio americano -em suma, um paciente cuja máquina de diálise é controlada por um médico louco que odeia o paciente... A única maneira de evitar a ameaça permanente é controlar diretamente os grandes fornecedores de petróleo no Oriente Médio.
A gradativa limitação da democracia é claramente visível nas tentativas de "repensar" a situação atual -somos, é claro, a favor da democracia e dos direitos humanos, mas devemos "repensá-los", e uma série de intervenções recentes no debate público dão um claro sentido da direção desse "repensar". Em "The Future of Freedom" [O Futuro da Liberdade, ed. W.W. Norton", Fareed Zakaria [da "Newsweek"], o colunista favorito de Bush, localiza a ameaça à liberdade em "exagerar a democracia", isto é, na ascensão da "democracia iliberal no país e no exterior" (o subtítulo do livro). Ele tira a lição de que a democracia só pode "dar certo" em países economicamente desenvolvidos: se os países em desenvolvimento forem "democratizados prematuramente", o resultado é um populismo que termina em catástrofe econômica e despotismo político -não admira que os países do Terceiro Mundo que hoje têm maior sucesso econômico (Taiwan, Coréia do Sul, Chile) só tenham adotado a democracia plena após um período de regime autoritário.

Quando líderes favoráveis à guerra são confrontados com o fato de que sua política está fora de sintonia com a maioria da população, eles recorrem à sabedoria de que "um verdadeiro líder lidera, não segue"


As lições imediatas para o Iraque são claras e inequívocas: sim, os EUA devem levar a democracia ao Iraque, mas não a impor imediatamente -deve haver primeiro um período de aproximadamente cinco anos em que um regime benevolamente autoritário controlado pelos EUA criaria as condições adequadas para o funcionamento eficaz da democracia... Hoje sabemos o que significa levar democracia: significa que os EUA e seus "parceiros dispostos" se impõem como juízes supremos que decidem se um país está maduro para a democracia. Quanto aos EUA propriamente, o diagnóstico de Zakaria é que "a América está cada vez mais adotando um populismo simplista que valoriza a popularidade e a abertura como medidas-chave de legitimidade. (...) O resultado é um profundo desequilíbrio no sistema americano: mais democracia, mas menos liberdade". O remédio é portanto contrabalançar essa excessiva "democratização da democracia" (ou "demaiscracia") delegando mais poder a especialistas imparciais imunes à disputa democrática, como os bancos centrais independentes. Esse diagnóstico só pode provocar um riso irônico: hoje, na alegada "superdemocratização", os EUA e o Reino Unido iniciaram uma guerra ao Iraque contra a vontade da maioria de suas populações, para não falar da comunidade internacional.

Órgãos imparciais e isentos
E não estamos o tempo todo presenciando a imposição de decisões-chave que envolvem a economia global (acordos comerciais etc.) por órgãos "imparciais" e isentos de controle democrático? A idéia de que em nossa era pós-ideológica a economia deve ser despolitizada e conduzida por especialistas não é hoje um lugar-comum compartilhado por todos os participantes? De maneira ainda mais fundamental, não é ridículo queixar-se da "superdemocratização" numa época em que as principais decisões econômicas e geopolíticas em geral não são um tema das eleições? O que Zakaria reivindica já é fato há pelo menos três décadas. O que estamos efetivamente presenciando hoje é uma divisão em questões ideológicas de estilo de vida em que há um feroz debate, opções são solicitadas (aborto, casamentos gay etc.) e a política econômica básica é apresentada como campo despolitizado para decisões especializadas -a proliferação da "superdemocracia", com os "excessos" da ação afirmativa, a "cultura da reclamação" e as exigências de indenização financeira e outras para as vítimas, é em última instância a frente em cujo verso se trama silenciosamente a lógica econômica. O obverso da mesma tendência para contrabalançar os excessos da "demaiscracia" é a negação aberta de qualquer organismo internacional que pudesse efetivamente controlar a conduta em uma guerra -é exemplar aqui o artigo de Kenneth Anderson "Who Owns the Rules of War?" [Quem é o Dono das Regras da Guerra?, na "New York Times Magazine" de 13/4/2003), cujo subtítulo expõe claramente sua tese: "A guerra no Iraque exige o repensar das regras de conduta internacional. O resultado poderá significar menos poder para grupos de direitos humanos neutros e bem-intencionados e mais para Estados militarizados. Isso seria uma boa coisa".

Lei da guerra
A principal queixa desse ensaio é a de que "nos últimos 20 anos o centro de gravidade -ao se estabelecer, interpretar e moldar a lei da guerra- gradualmente se afastou dos militares dos países líderes em direção a organizações de direitos humanos mais ativistas"; essa tendência é vista como desequilibrada, "injusta" para com as grandes potências militares que intervêm em outros países e favorável aos países atacados -com a clara conclusão de que os próprios militares dos Estados com poder bélico deveriam determinar os padrões pelos quais suas ações serão julgadas. Essa conclusão é bastante coerente com a negação pelos EUA da autoridade do Tribunal Penal Internacional [que tem sede em Haia, na Holanda" sobre seus cidadãos. Efetivamente, como teriam dito em "O Senhor dos Anéis", uma nova Idade das Trevas está baixando sobre a raça humana.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de "O Mais Sublime dos Histéricos" (ed. Jorge Zahar). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .


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