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+ sociedade
Comentários do autor de "Casa-Grande & Senzala" sobre os EUA dos anos 20
do século passado mantêm até hoje a atualidade
Os EUA de George W.Bush segundo Gilberto Freyre
Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
especial para a Folha , da Inglaterra
Todo mundo quer um brasileiro"
foi o título de um recente artigo,
de página inteira, num jornal londrino. O assunto era o novo interesse britânico pela cultura brasileira por
razões muito diferentes das que tradicionalmente têm atraído a atenção dos estrangeiros para o Brasil, tais como Copas
do Mundo, desastres ecológicos ou algum lamentável escândalo de qualquer
natureza. Esse recente interesse, sugere o
artigo, talvez seja fruto de uma nova percepção das possibilidades de um país
grande, economicamente importante e
excepcionalmente rico em diversidades
raciais e culturais.
Se se acrescer a esses fatores o seu novo
líder -visto mais e mais como "o salvador da esquerda internacional"-, o Brasil pode ser considerado "o único país
nas Américas que pode se opor aos
EUA". Confirmando (e ampliando) essa
expectativa sem precedentes, o sociólogo
Anthony Giddens apresentou o presidente à platéia da London School of Economics no dia 14 de julho dizendo: "Lula
diz que quer mudar o Brasil, mas eu seriamente acho que ele tem chances de
mudar o mundo". Enfim, a grande novidade é que, de repente, o Brasil está aqui
em alta.
Especulação
É difícil, nesse clima de
"brasilofilia", não especular sobre o que
diria Gilberto Freyre -tão vaidoso de si
e de seu país- sobre esse papel de crítico
dos Estados Unidos de Bush a que o Brasil está sendo chamado. Sem dúvida, se
estivesse vivo, ele se sentiria no dever de
opinar sobre um assunto de interesse
mundial como esse.
No entanto não temos que exercitar
quase nada nossa imaginação para supor
o que Freyre teria dito. Se observarmos
os comentários que fez a aspectos da cultura americana que conheceu na juventude, fica muitas vezes difícil acreditar
que eles não diziam respeito a 2003, mas
sim às primeiras décadas do século 20.
Perspicaz e arguto em suas observações,
muitas das críticas que Freyre dirigiu aos
EUA dos anos 20 foram afiadas, maduras e, guardada a distância, se revelam
ainda hoje pertinentes.
Para facilitar ainda mais esse exercício,
lembremos que Freyre iniciou sua experiência americana numa região texana
que é hoje conhecida como a "ala sudoeste da Casa Branca". A provinciana
Waco, onde viveu mais de dois anos estudando no chamado "Vaticano Batista"
(a Universidade de Baylor), fica a poucas
milhas do "ranch" de Bush e, como parte
do "Bible Belt", se acha hoje muito próxima do poder central do país. Como dizem os críticos, o puritanismo e fundamentalismo tradicionais de Waco e seus
arredores floresce livremente em Washington e dita regras para o mundo.
Senhor dólar
Mas vejamos uma pequena amostra do que o jovem Freyre
nos diz de relevante sobre os Estados
Unidos em que viveu. Em primeiro lugar, irritava-o sobremaneira a mania
americana de tudo avaliar pelo preço e se
impressionava com o poderio do que
chamava de "tentáculos do Senhor Dólar
todo poderoso".
Atento às discussões políticas, aos discursos presidenciais, às políticas governamentais e ao comportamento religioso e social do cidadão médio, Freyre notava uma forte tendência norte-americana para a mediocridade, puritanismo,
comercialismo e imperialismo, que o incomodavam ao extremo. Em primeiro
lugar, o sistema político tão glorificado
deveria ser descrito como uma "democracia desvairada" que privilegia a mediocridade em detrimento dos "homens
de gênio", dos verdadeiros estadistas superiores em "competência, virtude e capacidade de ação".
A democracia americana só de quando
em quando "puxa para a frente, pela gola
do paletó, um grande homem". Fora esse
o caso de Woodrow Wilson, o presidente
que se tornou paladino da Liga das Nações. Em contrapartida, o vencedor da
eleição de 1920 dera dos males dessa "xaroposa democracia" um eloquente testemunho. Numa época em que a questão
central que dominava o cenário mundial
era a reconstrução do pós-guerra, vencera o candidato que defendia os interesses
do "americanismo estreito" em oposição
ao "grande plano de arquitetura jurídica
e social" da Liga das Nações.
Homem do qual não "se conhecem
idéias próprias de importância nem iniciativas memoráveis", o eleito, Warren
Harding, pertencia, sem dúvida, à "família dos medíocres", afirmou Freyre. Seu
cérebro vale US$ 25, em contraste com o
US$ 1 milhão de seu antecessor, Wilson,
estipula Freyre imitando jocosamente a
mania americana de tudo avaliar por cifras. Já o puritanismo galopante que assolava o país, gerando, de um lado, a famigerada Lei Seca e, de outro, coibindo o
desenvolvimento da arte com uma estrita censura, lhe parecia sisudo, tirânico e
"estúpido".
Espírito de roncador
Muitos desses males se deviam ao espírito "de roncador", um traço cultural norte-americano que Freyre considerava bastante
acentuado. Seja por ingenuidade, seja
por arrogância, constatava o nosso visitante, os Estados Unidos -em geral e,
"mais do que ninguém", na pessoa de
seu presidente em exercício- se acham
"liricamente" convencidos de que em tudo, em governo, arte, literatura, moralidade, esportes, "estão légua e meia
adiante do resto do mundo" e que têm o
direito de limitar a soberania de outros
países quando se trata de salvaguardar e
promover os interesses nacionais norte-americanos. "Liga das Nações", "Pan-Americanismo" ou qualquer ideal internacionalista que possa se opor ao "americanismo estreito" encontra ali grande
oposição, Freyre comenta.
O desejo dos medíocres
O candidato democrata, cuja plataforma era
"enfática" no apoio a uma política internacional não-isolacionista, fora derrotado porque "assim quiseram os medíocres". Para completar, os americanos são
propensos a um patriotismo enganoso e
tendem a dar apoio para "as chamadas
"mentiras patrióticas'", como o discurso
das "vitórias, glórias e virtudes" de um
"povo-deus, imaculado, sempre a vencer
os estrangeiros maus", observa nosso
crítico com rara perspicácia.
Mas resta uma esperança, sugere Freyre. Quando a "capacidade inventiva" e o
"amor à aventura" que construíram um
grande país se deixam nortear pelos
grandes homens e ideais de seu passado,
os Estados Unidos encontram em si
mesmos "corretivos" e "fortes contrapesos" à pequenez que os acomete de
quando em quando. Esse, ao menos, era
o consolo dos anos 20. E agora?
Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke é professora
aposentada da USP, pesquisadora associada do
Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge e autora de "As Muitas Faces
da História" (ed. Unesp). Escreve atualmente um
livro sobre Gilberto Freyre e sua anglofilia.
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