UOL


São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CHEGADA A NOVA YORK ENTUSIASMOU O AUTOR DE "CIDADES INVISÍVEIS", QUE, NA ÉPOCA COM 36 ANOS, PASSOU CINCO MESES VIAJANDO PELOS EUA E FAZENDO ANOTAÇÕES

A VISÃO MAIS ESPETACULAR DA TERRA

Reprodução
O escritor Italo Calvino (1923-1985)


Maurício Santana Dias
especial para a Folha

Quando Italo Calvino desembarcou na ilha de Manhattan em 9 de novembro de 1959, aos 36 anos, levava na mala a sua trilogia de novelas fantásticas "Os Nossos Antepassados" (Companhia das Letras), um volume de fábulas italianas reescritas por ele no início dos anos 50 e uma idéia mais ou menos abstrata da América. Escrito ao longo dos cinco meses que passou nos EUA, este diário, de que o Mais! apresenta uma seleção, registra o confronto entre esses dois mundos: o imaginado a distância, desde a "Velha Europa", e o vivido nas ruas de Nova York, Chicago, San Francisco, Los Angeles, Las Vegas e algumas cidades do Sul profundo. A temporada tinha sido patrocinada pela Fundação Ford, num programa para "young creative writers" da Europa. Entre os jovens bolsistas estavam, além de Calvino, Fernando Arrabal, Claude Ollier, Alfred Tomlinson e Hugo Claus. Gunther Grass, que havia feito um tremendo sucesso dois anos antes com o romance "O Tambor", não pôde ir porque não conseguiu o visto para entrar nos EUA: embora sua cabeça estivesse em perfeito estado, seus pulmões não foram considerados dignos do ar da América. Os sentimentos contraditórios do escritor italiano em relação aos EUA e a tudo o que o país representava -a superpotência econômica e militar, epicentro da cultura moderna, da luta pelos direitos civis, a terra do consumo e do desperdício etc.-são imediatamente cristalizados numa imagem quase emblemática, assim que o transatlântico em que ele viajava se aproxima da ilha: "O tédio da viagem foi largamente compensado pela emoção da chegada a Nova York, a mais espetacular visão que se possa ter nesta terra. Os arranha-céus despontam cinzentos no céu semiclaro e parecem enormes ruínas de uma monstruosa Nova York abandonada daqui a 3.000 anos".

Força e ruína
A idéia de força e de ruína materializada nos arranha-céus, vistos numa perspectiva de 3.000 anos, será o fio condutor das observações de Calvino sobre os EUA. Por um lado, um franco encantamento por um país "jovem" e vigoroso, de longa tradição democrática; por outro, a convicção socialista -Calvino foi filiado ao Partido Comunista italiano até 1956, mas nunca deixou de ser um intelectual "de esquerda"- de que aquele modelo de sociedade estava condenado ao fracasso. Numa linguagem rápida e coloquial, o ficcionista vai incorporando ao seu discurso a mirada do etnólogo que se depara com uma outra civilização. E também a do historiador, do sociólogo, do psicólogo, do satirista, formando ao final um painel enciclopédico, aberto e provisório -sempre uma das aspirações do autor das "Seis Propostas para o Próximo Milênio".
Depois de dois meses em Manhattan visitando editoras, dando palestras em universidades, frequentando festas beatniks no Greenwich Village ou simplesmente passeando a cavalo no Central Park, Calvino segue viagem. Aí, ele descobre um outro mundo, muito diferente do cosmopolitismo nova-iorquino.
Na abertura da palestra que o escritor -na época, diretor da Einaudi, uma das principais editoras italianas- fez em várias cidades americanas, intitulada "Três Correntes do Romance Italiano de Hoje" (no volume de ensaios "Una Pietra Sopra", inédito no Brasil), ele diz: "Em cada passo que dou ao penetrar neste país tão distante do nosso, aprofundando-me no confronto cotidiano com uma outra civilização, buscando pontos de contato entre nós e vocês, encontro algo que altera a minha análise: um aspecto que me parecia essencial se revela secundário, um dado que eu subestimava se torna a chave para interpretar todo o resto".
Essa atenção ao detalhe periférico, aliada à capacidade de transformar a própria visão a partir do contato com outras realidades, é a pedra de toque deste diário e, talvez, de toda a literatura de Calvino.
Ao concluir sua incursão, após ter visto as "cidades invisíveis" do Meio-Oeste, ter apalpado a "miséria americana", os vilarejos esquálidos de beira de estrada, depois de ter testemunhado o racismo implacável dos sulistas em Montgomery (Alabama), Calvino retorna a Nova York e escreve, pouco antes de voltar à Itália: "Cidade sem raízes, [NY] é a única onde posso pensar que tenho raízes, no fundo dois meses de viagem são suficientes, e Nova York é o único lugar onde posso fazer de conta que sou residente".


Maurício Santana Dias é doutor em teoria literária (USP) e tradutor de, entre outros, "Um, Nenhum e Cem Mil" (Cosac & Naify), de Luigi Pirandello, e "O Mal Obscuro", de Giuseppe Berto (a sair pela ed. 34).


Texto Anterior: Capa 27.07
Próximo Texto: A bordo - 3.nov.59
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.