|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Teatro
O príncipe das trevas
Renovador da dramaturgia, o franco- canadense Robert Lepage fala da nova peça e do fascínio pelo experimentalismo
lingüístico e pelo demoníaco
LUCY POWELL
Acredito no diabo, na
possibilidade de
que você e eu estejamos tendo uma
conversa séria e que
o diabo entre na sala, de repente. A conversa teria que parar."
A conversa pára de qualquer
maneira. Robert Lepage, o festejado escritor, artista e autor
franco-canadense, solta uma
gargalhada levemente demoníaca, preenchendo o silêncio.
Estamos nas entranhas do
teatro Barbican [em Londres],
num camarim que é estranha e
excessivamente munido de espelhos, algo que exagera a aparência bizarra de Lepage, que
sofre de alopecia desde os seis
anos de idade.
A peruca que está usando é
moderna, castanha, delicada,
mas a ausência de cílios e sobrancelhas e o queixo anormalmente liso e sem pêlos lhe conferem o aspecto fascinante de
um ser que está na Terra apenas de passagem.
O mesmo pode ser dito de
suas falas. Uma conversa com
Lepage é como um de seus espetáculos. Salta do mundano
ao poético em seqüências tênues, e, sempre que se imagina
tê-lo compreendido, zomba de
si mesmo até você novamente
deixar de entender qualquer
coisa. "Não me tornei satanista", diz, rindo, "mas sou fascinado pelo caráter do diabo".
O comentário é feito para explicar por que quis dirigir a
ópera de Stravinski "The Rake's Progress" (A Trajetória do
Libertino, 1951), apresentada
em Londres de 7 a 18 deste
mês. Baseada nas pinturas setecentistas de William Hogarth, tem partitura neoclássica magnífica e é um dos maiores libretos já escritos, assinado por W.H. Auden e Chester
Kallman.
Mas o que atraiu Lepage para
o projeto foi sua identificação
com o personagem Tom Rakewell, que se deixa seduzir pelas
tentações da cidade grande, se
casa com uma mulher barbada
e perde sua alma e sua sanidade
para o mefistofélico Nick Shadow numa malfadada partida
de baralho.
Roupa nova
Lepage arrastou Hogarth a
Hollywood, ambientando a
ópera na Costa Oeste americana nos anos 1950. Quando Tom
joga cartas com o diabo, ele vai
a Las Vegas para fazê-lo.
"Las Vegas é a cidade das tentações", diz Lepage. "As pessoas vão para lá quando não
têm mais nada a perder. Nos
seus hotéis, as camareiras sempre trabalham em duplas, já
que constantemente encontram os corpos de suicidas."
Sempre que Lepage vem à cidade, o cheiro do circo o segue.
Há três décadas seu trabalho
vem atraindo ou o opróbrio
causticante ou a adulação desvairada. Ele é famoso por fazer
teatro para pessoas que não
gostam de teatro -espetáculos
galhofeiros e surreais, marcados pela tensão entre o romantismo saudosista e uma magia
técnica ultramoderna, uma
verve visual inimitável e a habilidade de vincular histórias
profundamente pessoais com
temas intelectuais improvavelmente vastos.
Sempre que o teatro é tachado de arte moribunda, Lepage é
citado como prova em contrário. Para cada obra inovadora
sua, porém, há uma "débâcle"
crítica e confusa, ocasionalmente turva. Ainda em 2002,
seu "La Casa Azul", sobre a artista plástica mexicana Frida
Kahlo, foi descrito como intelectualmente exaurido e emocionalmente límpido.
Lepage diz que se tornou
imune às críticas. "Não discordo dos críticos com freqüência
nem me deixo destruir pelas
críticas negativas. Chega-se a
um ponto em que se vai além
disso tudo."
Isso o faz soar como uma prima-dona pomposa. Mas, sejam
quais forem as outras acusações que se possam fazer a ele
-os gastos exorbitantes com
seus espetáculos, reduzir atores às lágrimas ao mudar de
idéia dias antes de uma estréia
ou semanas depois, criar espetáculos solo para os quais só ele
possui o carisma necessário para representar-, o epíteto de
prima-dona não cola.
"Com "The Andersen Project'" [Projeto Andersen], diz,
falando de seu show solo triunfal no Barbican, em 2006, uma
ode eclética ao escritor Hans
Christian Andersen, "pensei
que todas as manchetes diriam
"as novas roupas do imperador".
Isso não aconteceu. Mas, na
verdade, é com isso que você
precisa tomar cuidado: que
ninguém perceba quando você
não está vestindo nada".
Sua alopecia fez sua infância
ser isolada, e uma experiência
assustadora com um baseado
incrementado com ópio, aos 14
anos, o deixou sofrendo de agorafobia durante meses, até que
sua irmã menor, Lynda, hoje
sua assistente em Québec, o
forçou a atuar numa peça escolar. Lepage afirma que essa experiência salvou sua sanidade e
forjou um elo inquebrantável
entre ele e o teatro.
Tensão lingüística
Contrastando com isso, sua
família era profundamente dividida. Seus pais adotaram dois
filhos antes de se mudarem para Québec e conceberem Lepage. Assim, ele e sua irmã biológica falavam francês, enquanto
seus irmãos mais velhos, tendo
sido criados em Nova Scotia
[sudeste do Canadá], falavam
inglês. Sua família era "uma
metáfora do Canadá".
Essa tensão lingüística é uma
experiência que Lepage irá explorar em seu próximo espetáculo, "Lipsynch" [Dublagem,
que estará em cartaz no Barbican entre 6 e 14/9], uma colaboração entre sua companhia, a
Ex Machina, e o pequeno Théâtre sans Frontières [Teatro sem
Fronteiras].
O espetáculo vem sendo desenvolvido há seis anos e terá
duração de nove horas, o suficiente para cansar as nádegas
do público.
Voz, linguagem e fala são a
"divina trindade" por trás de
"Dublagem", partindo do pai,
da mãe e do eu -se bem que o
pai "poderia ser a amante de
sua mãe". "A voz do pai pertence à pessoa que exerce o maior
impacto emocional sobre sua
mãe quando você está no útero", explica Lepage.
"Dublagem" promete explorar implacavelmente a idéia de
como nos apoderamos da linguagem, para isso percorrendo
os arcos repetidos de nove personagens ao longo de sete décadas (entre 1945 e 2015).
É claro, diz Lepage, que a peça não difere de seu estilo visual
fértil, mas, "sim, alguns atores
vão aparecer em várias histórias, para manter tudo vinculado -é como fazer uma trança".
Mas, quando se pede que revele
a narrativa unificadora, ele faz
uma pausa. "É muito complexa", responde, sorrindo. "Outra
coisa: ainda não está pronta."
Para a maioria dos autores,
tal incerteza seria paralisante.
Para Lepage, porém, é crucial:
"Procuro conservar duas coisas
em meu trabalho: dúvida e
caos. As pessoas me perguntam: "Você tem uma receita,
uma "linguagem lepagiana'?" Eu
digo que não -deixe essa idéia
longe de mim, não a quero.
Gosto de me arriscar".
A íntegra deste texto saiu no "Independent".
Tradução de Clara Allain.
Texto Anterior: Discoteca básica: Canções Praieiras Próximo Texto: Lepage básico Índice
|