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O Mundo Alucinante
PUBLICADO EM 2002, "GARCÍA LORCA E CUBA - TODAS AS ÁGUAS" PERMANECE VIRTUALMENTE DESCONHECIDO DOS CRÍTICOS; AUTOR EXPLICA QUE NÃO TEVE ACESSO À INTERNET E QUE FEZ SUA PESQUISA PELO CORREIO, DURANTE DOIS ANOS
Lorca se entusiasmou com o sotaque da ilha e exerceu uma liberdade sexual como jamais havia conhecido; ele foi muito livre aqui; não há registro de nenhuma reprovação a sua conduta sexual
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Dusam Zidar/Shutterstock
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Praça da Catedral, em Havana, uma das cidades visitadas pelo poeta surrealista espanhol Federico García Lorca durante os três meses que passou em Cuba, em 1930, vindo dos Estados Unidos
LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A MATANZAS(CUBA)
Não há lugar no
mundo que mais
cultue a lembrança de Federico
García Lorca
(1898-1936) do que Cuba. O
prestígio do poeta e dramaturgo andaluz do "verde que te
quiero verde", que foi assassinado por militantes franquistas logo depois da deflagração
da Guerra Civil Espanhola, resiste na ilha dos irmãos Castro.
É o escritor estrangeiro mais
lido e representado, apesar da
declarada preferência dos hierarcas comunistas pelo americano Ernest Hemingway
(1899-1961), que chegou a morar na ilha.
Lorca passou meros três meses na ilha, no ano de 1930. Nas
palavras do pesquisador Urbano Martínez Carmenate, 54,
professor de língua e literatura
hispano-cubana da Universidade Camilo Cienfuegos de
Matanzas, foi uma visita que
"contaminou o país" -tão intensa, com o poeta vivendo em
tanta liberdade e gozando de
tanto sucesso, que já se disse
que, em Cuba, cada um tem o
seu Lorca.
"García Lorca y Cuba - Todas
las Aguas" (264 págs., 16,80),
de Martínez Carmenate, tenta
explicar a recíproca fascinação
a partir do que chama de "biografia de uma visita".
Para isso, o pesquisador vasculhou a correspondência entre Lorca e intelectuais cubanos, refez o percurso do escritor pela ilha, reconstruiu, a
partir da cobertura da imprensa, o entusiasmo local com as
conferências e récitas do poeta.
A Folha encontrou Martínez
Carmenate em seu apartamento, um quarto e sala inundado
de livros e luz, na tarde quente
e úmida em Matanzas (100 km
a leste de Havana), conhecida
como a "Atenas cubana" por
sua intensa vida cultural.
Um computador recém-retirado da caixa brilhava novinho
em folha na sala (a universidade tinha acabado de entregá-lo). "Não terá acesso à internet", ele me explica, sem parecer incomodado com o fato de a
ilha ainda ser um dinossauro
em termos tecnológicos. "Mas
conseguirei me ligar à intranet
de Cuba", diz.
Martínez Carmenate explica
que "Todas as Águas" só foi
possível graças a amigos e ao
Patronato Cultural Federico
García Lorca de la Diputación
de Granada, que, da Espanha,
mandavam-lhe pelo correio
convencional livros e cópias de
documentos e jornais.
Tudo foi sendo meticulosamente anotado a lápis em fichas e, daí, sistematizado no
original manuscrito. Provavelmente como o próprio Lorca e
seus contemporâneos fariam.
Ao lado da poltrona do escritor,
vê-se um grande cinzeiro
transformado em recipiente de
borrachas e lápis.
O livro foi publicado pelo Patronato, na Espanha, e pelo
Centro de Investigação e Desenvolvimento da Cultura Cubana Juan Marinello, em Havana. Embora seja um dos mais
abrangentes estudos já feitos
sobre a estada do poeta andaluz em Cuba, permanece praticamente ignorado, pelo difícil
acesso à obra e ao escritor.
Martínez Carmenate trabalha no Museo Provincial Palacio de Junco, em Matanzas, e é
presidente do Consejo Científico de la Dirección Provincial
de Cultura.
Ele também dá aulas de cultura cubana na Escola de Arte
(nível médio) de Matanzas. Só
saiu de Cuba uma vez, para trabalhar em Angola, entre 1988 e
1989. Nunca foi à Andaluzia de
Lorca.
Leia a seguir trechos da entrevista.
FOLHA - Como é possível hoje em
dia escrever um livro de pesquisa
sem a ajuda da internet?
URBANO MARTÍNEZ CARMENATE -
Meu método de trabalho foi,
em primeiro lugar, buscar toda
a bibliografia, tudo o que foi escrito pelos contemporâneos
cubanos sobre o impacto da visita de Lorca. Escreveu-se muito sobre o que aconteceu em
Santiago de Cuba, em Havana,
sobre a viagem a Cienfuegos.
Sobre Matanzas quase não se
disse nada.
Houve necessidade de levantar tudo o que saiu na imprensa. Surgiram novas cartas, recém-descobertas, na Espanha.
E assim como era epistolar o
contato entre Lorca e seus amigos, também foi epistolar o
contato com meus informantes
e colaboradores.
Sempre que saía algo novo
sobre Lorca, eu escrevia a meus
amigos na Europa e lhes pedia
que me enviassem. Vinha pelo
correio.
Esse trabalho foi feito de segunda a segunda; manhã, tarde
e noite, durante dois anos. Sem
computador, escrito a lápis. O
computador só chegou aqui em
casa há um mês e meio -e não
tem conexão com a internet.
Só tenho o que se chama de
intranet.
FOLHA - Por que García Lorca foi
para Cuba?
MARTÍNEZ CARMENATE - A atração
entre o poeta e Cuba é bem anterior a sua chegada a Havana,
em 7 de março de 1930. O intelectual cubano Juan Marinello
(1898-1977) lembrava-se de escutar Lorca lhe contar sobre o
fascínio que tinha, ainda criança, pelas tampas das caixas de
charutos cubanos que chegavam a Fuentevaqueros (onde
Lorca nasceu) para abastecer o
negócio de seu pai, que era importador.
As litogravuras coloridíssimas carregadas de palmeiras,
plantações, céus pintados de
turquesa, medalhas de ouro o
faziam sonhar com uma Cuba
distante e onírica.
Além disso, havia as famosas
"habaneras", o primeiro ritmo
autenticamente cubano a ser
exportado para a Europa e que
o menino Lorca escutava nas
vozes de uma tia e uma prima.
Cuba era a ilha do sol ardente,
da sensualidade e do ritmo.
E houve o contato, já na juventude, com intelectuais cubanos, entre os quais se destava
José Maria Chacón y Calvo,
que se tornou um amigo querido e que o colocou em contato
com poetas da ilha.
FOLHA - Como ele chegou aqui?
MARTÍNEZ CARMENATE - Ian Gibson, o mais importante biógrafo de Lorca, diz que o poeta saiu
da Espanha naquele ano de
1929 muito desesperado do
ponto de vista amoroso -estava apaixonado por um pintor,
em um relacionamento muito
tumultuado, e decidiu sair.
Depois de um período curto
na Inglaterra e na França, chegou a Nova York, onde estudou
na Universidade Columbia, fez
conferências e andou pelos
bairros miseráveis da cidade
pós-tragédia social do crack na
Bolsa de Nova York.
Uma experiência intensa,
que serviu de base para "Poeta
em Nova York", que ele provavelmente concluiu durante sua
estada em Cuba.
Foi um convite da Instituição
Hispanoamericana de Cultura
para apresentar-se em Havana
que levou Lorca à ilha. Chegou
mais calmo do que estava ao
sair da Espanha.
FOLHA - "Poeta em Nova York" é,
entre outras coisas, uma denúncia
contundente da opressão capitalista, principalmente aquela é exercida
contra os negros. Em sua opinião,
qual é a contribuição da estada de
Lorca em Cuba para sua obra e sua
visão de mundo?
MARTÍNEZ CARMENATE - Existe um
mito envolvendo essa viagem: o
de que Lorca teria fugido dos
EUA e ido para Cuba porque se
sentia oprimido naquela que
ele mesmo chamou de "cidade
mais atrevida e mais moderna
do mundo".
Chamo de mito, mas, na verdade, é apenas uma idéia demasiadamente simplista. Lorca
envolveu-se com aquela "babilônia trepidante": "Em três de
seus arranha-céus, caberia
Granada inteira", disse.
Ele viu a tragédia social acontecendo, em particular com os
negros. Mas Lorca sabia, antes
de ir para os EUA, aonde estava
indo. Em carta a um amigo, disse: "Nova York me parece horrível, mas por isso mesmo vou
para lá". A viagem a Cuba, assim, não foi uma fuga, mas uma
escala a mais.
FOLHA - Mas em que essa estada
em Cuba influiu sobre ele?
MARTÍNEZ CARMENATE - Era um
sonho conhecer Cuba -o mesmo que acontecia com muitos
espanhóis. Ele se entusiasmou
com o sotaque da ilha e exerceu
uma liberdade sexual como jamais havia conhecido. Lorca foi
muito livre aqui. Não há registro de nenhuma reprovação a
sua conduta sexual.
E veja, em Cuba, como na Espanha, vivia-se um período de
forte anti-homossexualismo,
de repressão e machismo puro.
Mas, ambígua como sempre foi
a sociedade cubana, ninguém
se intrometia com ele, ninguém
o discriminou.
FOLHA - Desse ponto de vista, afetivo e sexual, pode-se dizer que a estada em Cuba serviu como uma liberação, já que o próprio Lorca se referiria ao período como "o mais feliz"
de sua vida? Poemas como "Ode a
Walt Whitman" podem ser vistos
como prova de que ele passou a tratar a homossexualidade mais abertamente após a viagem a Cuba?
MARTÍNEZ CARMENATE - Sem dúvida, muito da sensação de estar
em casa, que Lorca viveu em
sua estada cubana, tem a ver
com o contraste com o que ele
viveu nos EUA. A sociedade cubana sempre foi mais aberta, e
Cuba foi um dos primeiros países a aceitar o divórcio, ainda
nos anos 1920. Sempre esteve
um pouco adiante em termos
comportamentais.
O Lorca que saiu de Cuba era
outro em comparação com o
que aqui chegou. Isso se deu
principalmente em relação a
sua homossexualidade. Ele não
apenas viveu mais livremente
aqui, mas, de certa maneira, se
tornou também mais disposto
a viver sua homossexualidade.
E concordo com você: "Ode a
Walt Whitman" [leia trecho na
pág. ao lado] certamente é
exemplo disso.
FOLHA - Assim, pode-se ver as viagens a Nova York e a Cuba como
complementares e dialéticas -muito crítico com uma, muito condescendente com a outra?
MARTÍNEZ CARMENATE - Repito:
considero uma politização vulgar, chauvinista, analisar a obra
do poeta como se ele fosse um
repórter de seu tempo. Antes
de tudo, ela deita raízes em
questões existenciais.
Veja, em Nova York chegou
um homem amorosamente
atormentado.
Aqui, Lorca passou apenas
três meses, mas foram três meses em que fez maravilhas. Foi a
Santiago de Cuba. Foi ao interior, a Cienfuegos, veio até Matanzas, passou por Pinar del
Río, freqüentou os salões de
Havana: Lorca se moveu muito,
sentiu-se à vontade.
Em uma carta endereçada
aos pais, escreveu: "Si mi pierdo, que me busquen en Cuba o
en Andaluzia". Foi um amor
imediato, feito em grande parte
de similitudes e paralelos.
FOLHA - Por exemplo...
MARTÍNEZ CARMENATE - Lorca logo descobriu como a arquitetura de Havana se parecia com a
andaluz, com seus solares voltados para pátios centrais. Isso
é tipicamente andaluz.
Ele adorava entrar pelos pátios das casas e dizer: "Estou na
Andaluzia; estou em Granada,
em Cádiz". É uma identidade
forte, com origem histórica: a
colonização cubana foi grandemente influenciada pelos andaluzes, que aqui chegaram com
os catalães e canários.
FOLHA - Como a Cuba de hoje trataria o homossexual García Lorca?
MARTÍNEZ CARMENATE - Hoje,
existe propaganda pública pela
TV, em outdoors, a favor do reconhecimento dos direitos dos
homossexuais e contra a discriminação. A própria filha do
presidente Raúl Castro [Mariela Castro] é a diretora do Centro Nacional de Educação Social, uma entidade financiada
pelo governo, que luta pelos direitos das minorias.
Ela é a primeira defensora
histórica dessa causa. Inclusive, propiciou recentemente a
celebração da união civil de
duas mulheres homossexuais.
Acho que estamos avançando
muito rapidamente nessa área.
FOLHA - Como era a vida dele aqui?
MARTÍNEZ CARMENATE - O que se
sabe a respeito é o que ficou documentado na correspondência, nos jornais ou nas recordações de contemporâneos, em
geral escritores pertencentes
aos estratos da alta burguesia,
como o amigo José Maria Chacón y Calvo.
Mas existem grandes lacunas
nesse material, sugerindo momentos em que o poeta mergulhou na Cuba dos pobres. Aqui
em Matanzas, por exemplo, sabe-se que ele ia freqüentemente a casas de negros.
Essa relação com a gente do
povo o encantou. Era a época
do movimento "sonero", gênero musical popular mais acelerado que a canção, e que começava a se expandir pela Europa.
Fascinado pelo som, Lorca,
que tinha sólida formação em
música, perdia-se nos chamados "choris", que nada mais
eram do que cabarés improvisados, em que se ouvia e dançava música tocada por orquestras de músicos negros.
Lorca se impressionou muito
e mergulhou nisso.
FOLHA - Como a descoberta da
música negra se relaciona com suas
experiências vanguardistas?
MARTÍNEZ CARMENATE - Cuba já
conhecia Lorca. Por isso, ele recebeu o convite do presidente
da Instituição Hispano-Cubana de Cultura, que pretendia
estreitar os laços entre os dois
países. E sua presença aqui foi
um sucesso de público.
Ele tinha um encanto muito
especial. Apesar de não ser um
sujeito bonito fisicamente, tinha graça, era capaz de ver a
poesia em qualquer parte
(aliás, como era típico dos surrealistas, que conseguiam tirar
poesia de qualquer fato).
Já havia nele a tendência
progressista, ao chegar a Cuba.
Sempre tomou partido dos pobres -solidarizou-se inclusive
com uma greve de telefonistas,
que o impediu de manter contato com sua família. Nada
mais natural, assim, do que
buscar a fusão de sua poesia
com a tradição popular.
FOLHA - Como fez isso?
MARTÍNEZ CARMENATE - Derivada
do vanguardismo, a poesia de
Lorca estava passando sua etapa de experimentação concreta, para desembocar no chamado neopopularismo, cuja idéia
era sair em busca dos elementos populares -os "Poemas Gitanos" são exemplo disso, a
partir dos elementos da cultura
tradicional cigana.
Em Cuba, essa experimentação serviu de inspiração para a
busca dos componentes negros
da cultura cubana -ia-se em
busca da extração "negrista",
"afro-cubana" ou "mulata", típica da cultura cubana.
FOLHA - Como esse "negrismo" se
manifestou na poesia?
MARTÍNEZ CARMENATE - Lorca ficou impressionado com a poesia de Nicolás Guillén (1902-89), que publicou "Los Motivos
de Son" no mesmo ano em que
ele chegou a Cuba. Nos "Motivos", os negros falavam com
suas próprias vozes (e não por
acaso: o próprio Guillén era
mestiço e conhecia o modo de
falar do negro pobre cubano).
Para Lorca, foi um deslumbramento a aventura de transformar o som em poema.
No poema chamado "Negro
Bembón", por exemplo, Guillén escreve:
"¨Po qué [ele fala "po qué",
em vez de "por que"] te pone
tan brabo,/
cuando te disen negro
bembón,/
si tiene la boca santa,/
negro bembón?"
Guillén penetrou no modo de
expressão dos negros, expressando-se como eles, fazendo
dela uma forma de poesia.
FOLHA - Quem é García Lorca para
o cubano médio? Suas poesias e
suas peças são ensinadas na escola?
MARTÍNEZ CARMENATE - Sim, as
escolas ensinam Lorca. Mas,
mais do que isso, Cuba vive
Lorca. Comprovadamente, ele
tem mais edições em Cuba do
que Ernest Hemingway.
Até a década de 1990, o Gran
Teatro de La Habana se chamava Federico García Lorca, uma
homenagem incrível. Nem a
Espanha tinha um teatro chamado García Lorca. Depois de
uma reforma, a principal sala
de danças do Gran Teatro recebeu o nome do poeta.
E seus poemas também ficaram muito populares porque
vários deles receberam melodias feitas por músicos cubanos. Lorca ainda hoje é o dramaturgo estrangeiro mais representado em Cuba.
No centenário de seu nascimento, comemorado em 1998,
republicaram-se muitos livros
dele. Ele é sempre alvo de um
vivo interesse em Cuba.
FOLHA - O sr. descreve com estranhamento um aspecto da Cuba dos
anos 30: "Os produtos mais anunciados levam nomes de fonética estrangeirizante: "Flit", contra mosquitos e baratas; navalhas "Kirby Beard"
ou "Gillette", para "o barbear perfeito'; "Colgate", creme dental; relógio
"Westclox" (...)" e outros.
MARTÍNEZ CARMENATE - (interrompendo) Já sei. Você vai me
dizer que é assim em qualquer
lugar do mundo ocidental, não
é? OK. Mas eu sou cubano.
ONDE ENCOMENDAR - Livros em
espanhol podem ser encomendados
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