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O grande formador
Maior crítico literário do país, Antonio Candido faz 90 anos, mas suas lições continuam mal compreendidas
LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA
Pedem-me que diga
em poucas linhas o
que me parece mais
significativo na obra
de Antonio Candido.
Depois de separar seus livros
e relê-los por mínimas horas,
minha primeira resposta praticamente se opunha à tarefa
que havia aceito: o leitor de fato
interessado há de lê-lo por inteiro. Só quem assim fizer terá
segurança em compreender
como seu perfil intelectual foi
se constituindo.
Deparo-me, contudo, com a
reiteração de um fato curioso:
ao ser lida ou ouvida, a palavra
tem a propriedade de nos fazer
nela entender o que antes não
se sabia. Assim, mal escrevo o
que se leu, me digo: por que eu
mesmo não procuro formular
como vejo que se formou o perfil de Antonio Candido?
Releio então com cuidado
"Brigada Ligeira" (1945) e procuro selecionar passagem posterior, entre os quais possa estabelecer um curso.
Dos pequenos artigos de
"Brigada Ligeira", concentro-me em passagens sobre os romances de Jorge Amado [1912-2001] e Oswald de Andrade
[1890-1954].
O então jovem crítico elogiava no escritor baiano ter abandonado a visão "lírica e de certo
modo pitoresca do homem do
campo", então vigente, em favor das "perspectivas de conflito" decorrentes de nossa extrema desigualdade social.
Diferenciar
Dentro dessa mudança de
óptica, destaca em Jorge Amado seu "apelo algo fácil para a
sentimentalidade, o patético de
segunda ordem". Sem que se
restrinja a criticá-lo, acentua
ainda sua falta de construção,
sua capacidade "fraca e sumária" de análise.
Ou seja, em vez de reduzir o
que e o como à mesma coisa,
importa ao crítico diferenciar
entre a natureza do argumento
que o romancista escolhia e a
maneira de constituí-lo em objeto literário.
A mesma distinção reaparecerá a propósito de Oswald.
Mas seu rendimento não é
idêntico. Em contraste com a
primeira fase, pós-parnasiana e
recendendo a literatura, seus
romances experimentais são
vistos como um degrau acima,
ainda que situados em um degrau inferior àquele em que estaria "A Revolução Melancólica", na abertura da série do
"Marco Zero", isto é, do Oswald
do romance social.
Neste, portanto, ultrapassadas as duas primeiras fases, Oswald se lançava numa "perspectiva sintética de crítica social construtiva". Ou seja, ao
contrário do que sucedia na
apreciação de Amado, a primeira variável -o destaque da matéria social- sufocava e deitava
por terra a segunda -a exigência de o objeto atender à qualificação literária.
Destaques
Aprendiz de um ofício em um
país em que o iniciante há de
ser o mestre de si mesmo, Candido ficava aquém de sua própria exigência.
Contraste-se esse resultado
com a abertura do "Prefácio a
"O Discurso e a Cidade'" (1993):
(Tento analisar) "o processo
por cujo intermédio a realidade
do mundo e do ser se torna, na
narrativa ficcional, componente de uma estrutura literária,
permitindo que seja estudada
em si mesma, como algo autônomo".
Seria dentro desse percurso
que localizaria o que de mais
significativo tem sido feito pelo
homenageado.
Destaco, então, dois tipos de
textos: aqueles em que ressalta
a própria análise sociológica da
literatura e aqueles em que o objeto privilegiado é um texto
específico.
No primeiro caso, são exemplares "O Escritor e o Público",
hoje em "Literatura e Sociedade", e "Literatura e Subdesenvolvimento", presente em "A
Educação pela Noite". Não me
furto a destacar duas pequenas
passagens do primeiro.
Embora Candido esteja tratando da literatura brasileira
do 19, os motivos centrais que
aborda continuam entre nós
presentes, conquanto as "palavras de ordem ou incentivo" esperadas hoje antes derivem das
colunas televisivas do que propriamente dos escritores: "Esta
literatura militante chegou ao
grande público como sermão,
artigo, panfleto, ode cívica; e o
grande público aprendeu a esperar dos intelectuais palavras
de ordem ou incentivo, com referência aos problemas da jovem nação que surgia".
Marcos interpretativos
O segundo trecho exigiria outra reflexão: "A grande maioria
dos nossos escritores, em prosa
e verso, fala de pena em punho
e prefigura um leitor que ouve o
som de sua voz brotar a cada
passo por entre as linhas".
A permanência dessa "oralidade" se dá menos pelo tom enfático da palavra de escritores-cronistas do que pela ausência
de reflexão que continuamos a
cultivar.
Já o segundo tipo que saliento concerne a obras especificamente literárias.
Aí ressaltaria os estudos primorosos sobre "Grande Sertão", de Guimarães Rosa -"O
Homem dos Avessos" (originalmente publicado em 1957) e
a "Dialética da Malandragem",
sobre as "Memórias de um Sargento de Milícias", de Manuel
Antônio de Almeida, de 1970
[incluído em "O Discurso e a
Cidade"].
O leitor menos ligado à especialidade literária poderá supor
que, dado o prestígio de Candido, os analistas vindos depois
dele evitariam os deslizes que
ele soubera apontar. Mas não é
bem assim.
É verdade que a diferenciação entre os planos de abordagem historiográfico e literário
não é algo corriqueiro. Mas não
deixa de ser espantoso que, sobretudo em relação a "Grande
Sertão: Veredas", a diferenciação que Candido tão bem soube
estabelecer, mal o romance esteve lançado, é "esquecida" em
favor de uma historicidade
simplesmente de pasmar. O pequeno espaço de que disponho
não me permite dizer mais.
Lamento não ter ainda umas
poucas linhas para examinar o
que diz acerca dos fragmentos
sobre a literatura colonial que
Sérgio Buarque de Holanda
[1902-82] não terminou.
Outra história
O que Candido declara sobre
a reflexão do amigo -que, a
propósito de um Cláudio Manuel, fundindo os veios barroco
e neoclássico, opunha uma "visão longitudinal" da história da
literatura, à transversal, "quase
obrigatória"- seria um argumento estimulante para o debate em torno da concepção de
história da literatura que domina na obra mais discutida de
Candido, "Formação da Literatura Brasileira" (1959).
Na impossibilidade de fazê-lo, apenas acentuo que o estímulo a uma visão longitudinal
da história da literatura não só
serviria para o debate fecundo
da "Formação" como de obstáculo para a separação rígida da
história em períodos, que a assemelha a uma linha que o tempo vai fazendo com que mude
unanimemente de cor e feição.
LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente
na seção "Autores", do Mais!.
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