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Sociedade
O mutante
O filósofo esloveno Slavoj Zizek escreve sobre a prisão do ex-líder sérvio indiciado por genocídio Radovan Karadzic, preso na última segunda
SLAVOJ ZIZEK
COLUNISTA DA FOLHA
Radovan Karadzic, líder sérvio bósnio
responsável por uma
terrível limpeza étnica na guerra pós-iugoslava, finalmente está preso. Agora é hora de darmos um
passo para trás para contemplar o outro lado de sua personalidade: esse psiquiatra por
profissão foi não apenas um líder político e militar implacável, mas também poeta.
Sua poesia não deve ser simplesmente descartada como ridícula -merece ser lida com
atenção, pois oferece uma pista
para a compreensão de como
funciona a limpeza étnica.
Seguem os primeiros versos
do poema sem título identificado por uma dedicatória: "... Para Izlet Sarajlic":
"Converta-se à minha nova
fé, multidão / Eu lhe ofereço o
que nunca ninguém teve antes
/ Lhe ofereço inclemência e vinho / Aquele que não terá pão
será alimentado pela luz de
meu sol / Povo, em minha fé
nada é proibido / Há amor e há
bebida / E olhar para o Sol por
tanto tempo quanto quiserem /
E essa divindade não proíbe
nada / Dêem ouvidos a meu
chamado, irmãos, povo, multidão."
Esses versos descrevem uma
constelação precisa: um líder
que oferece a seus súditos "inclemência e vinho", ou seja, um
líder que representa o chamado incondicional do superego
brutal e obsceno pela suspensão de todas as proibições e o
gozo de uma orgia destrutiva
permanente.
O superego é "essa divindade" que "não proíbe nada", e tal
suspensão das proibições morais é um elemento crucial do
nacionalismo "pós-moderno"
de hoje. Aqui é virado do avesso
o clichê segundo o qual a identificação étnica ardente restaura um conjunto de valores e
crenças firmes em meio à insegurança confusa da moderna
sociedade secular global.
"Você pode!"
Em lugar disso, o "fundamentalismo" nacionalista funciona como operador de um
"você pode!" secreto, mal e mal
oculto.
É a aparentemente hedonista e permissiva sociedade reflexiva pós-moderna de hoje que,
de modo paradoxal, está cada
vez mais saturada de normas e
regulamentos que supostamente fomentam nosso bem-estar (restrições ao fumar e ao
comer, regras contra o assédio
sexual etc.) -de modo que, longe de nos restringir ainda mais,
a referência a alguma identificação étnica ardente funciona
como o chamado libertador
"você pode!".
Você é autorizado a violar as
normas rígidas da convivência
pacífica numa sociedade liberal
tolerante, você pode beber e comer o que quiser, aderir aos
costumes patriarcais proibidos
pela correção política liberal
-pode até mesmo odiar, lutar,
matar e violentar...
Sem o pleno reconhecimento
desse perverso efeito pseudolibertador do nacionalismo de
hoje, de como o superego obscenamente permissivo suplementa a textura explícita da lei
social simbólica, nós nos condenamos a não compreender
sua verdadeira dinâmica.
O conhecido colunista sérvio
Aleksandar Tijanic, que durante um período breve chegou a
ser ministro da Informação e
Mídia Pública de Milosevic
[Slobodan Milosevic, ex-presidente sérvio, que foi preso em
2000 e morreu na prisão em
2006], descreve nos seguintes
termos "a estranha simbiose
entre Milosevic e os sérvios":
"Milosevic cai bem junto dos
sérvios, de modo geral. Na época de seu governo, os sérvios
aboliram o tempo para trabalhar. Ninguém fazia nada. Ele
autorizou o crescimento do
mercado negro e do contrabando. Você pode aparecer na televisão estatal e insultar Blair,
Clinton ou qualquer outro dos
"dignitários mundiais". [...] Ademais, Milosevic nos deu o direito de portar armas. Ele nos deu
o direito de resolver todos nossos problemas com armas. Ele
também nos deu o direito de dirigir carros roubados. [...] Milosevic converteu o cotidiano dos
sérvios em um grande feriado e
fez com que todos pudéssemos
nos sentir como estudantes ginasianos numa viagem de formatura -o que significa que
nada, mas realmente nada, do
que se possa fazer é passível de
punição."
Kusturica tendencioso
Não é essa, também, a situação retratada em "Underground - Mentiras de Guerra",
de Emir Kusturica?
A mensagem do filme não reside primordialmente em sua
tendenciosidade descarada, na
maneira como toma partido no
conflito pós-iugoslavo (os sérvios heróicos versus os traiçoeiros e pró-nazistas eslovenos e croatas...), mas sim em
sua própria atitude esteticista,
supostamente despolitizada.
Ou seja, quando, em suas
conversas com os jornalistas da
"Cahiers du Cinéma", Kusturica insistiu em que "Underground" não é um filme político, mas uma espécie de experiência subjetiva liminar, semelhante a um transe, um "suicídio protelado", ele com isso,
sem ter consciência do que fazia, pôs sobre a mesa suas cartas políticas verdadeiras e indicou que "Underground" encena o pano de fundo fantasmático e "apolítico" da limpeza étnica e das crueldades de guerra
pós-iugoslavas.
Ao encenar o domínio do
"suicídio protelado", da orgia
eterna de bebida, canto e cópula, que ocorre na suspensão do
tempo e fora do espaço público,
Kusturica de fato apresenta a
economia libidinal da matança
étnica sérvia na Bósnia. E é nisso que consiste o "sonho" dos
limpadores étnicos, é nisso que
reside a resposta à pergunta
"como eles foram capazes de
fazê-lo?".
Se a definição padrão de
guerra é a de "uma continuação
da política com outros meios",
então podemos afirmar que o
fato de Karadzic ser poeta não é
mera coincidência gratuita: a
limpeza étnica na Bósnia foi a
continuação de uma (espécie
de) poesia por outros meios.
A reputação de Platão é prejudicada por sua declaração de
que os poetas deveriam ser expulsos da cidade. A julgar por
essa experiência pós-iugoslava,
em que a limpeza étnica foi preparada pelos sonhos perigosos
de poetas, é um conselho bastante sensato.
É verdade que Milosevic
"manipulou" as paixões nacionalistas -mas foram os poetas
que lhe forneceram o material
que se prestou a ser manipulado. Eles -os poetas sinceros,
não os políticos corrompidos-
estiveram na origem de tudo,
quando, nos anos 1970 e início
dos anos 1980, começaram a espalhar as sementes do nacionalismo agressivo não apenas na
Sérvia, mas também em outras
repúblicas pós-iugoslavas.
Em lugar do complexo industrial-militar, nós, na pós-Iugoslávia, tivemos o complexo poético-militar, personificado nas
figuras gêmeas de Radovan Karadzic e Ratko Mladic.
A Iugoslávia nos anos 1970 e
1980 era como o proverbial gato na charge, que continua a caminhar sobre um precipício.
Ele só cai quando, finalmente,
olha para baixo e percebe que
não existe terra firme sob suas
patas. Milosevic foi o primeiro
que nos forçou a realmente
olhar para baixo, para dentro
do precipício.
É demasiado fácil descartar
Karadzic e companhia, tachando-os simplesmente de maus
poetas: outras nações ex-iugoslavas (além da própria Sérvia)
tiveram poetas e escritores reconhecidos como "grandes" e
"autênticos" e que também se
engajaram plenamente em
seus projetos nacionalistas.
E o que dizer do austríaco Peter Handke, clássico da literatura européia contemporânea,
que, reveladoramente, acompanhou o funeral de Slobodan
Milosevic?
Era pós-ideológica
O predomínio da violência
religiosamente (ou etnicamente) justificada pode ser explicado pelo próprio fato de vivermos numa era que se vê como
sendo pós-ideológica.
Como já não é possível mobilizar grandes causas públicas
com base na violência em massa -ou seja, a guerra- na medida em que nossa ideologia hegemônica nos chama para desfrutar nossas vidas e realizar
nossos eus, é difícil para a
maioria das pessoas superar
sua repugnância diante da idéia
de torturar e matar outro ser
humano.
A grande maioria das pessoas
é espontaneamente "moral":
matar outro ser humano é profundamente traumático. Assim, para convencê-las a fazê-lo, é preciso uma causa "sagrada" maior, que faça os melindres individuais em relação ao
assassinato parecerem triviais.
Anestesia
A religião ou o pertencimento étnico se enquadram perfeitamente nesse papel. É claro
que existem casos de ateus patológicos que são capazes de cometer assassinatos em massa
apenas por prazer, matar simplesmente por matar, mas eles
constituem exceções raras.
A maioria de nós precisa ser
"anestesiada" contra nossa
sensibilidade elementar ao sofrimento do outro. E para isso é
preciso uma causa sagrada.
Mais de um século atrás, em
"Os Irmãos Karamázov", Dostoiévski lançou um aviso contra
os perigos do niilismo moral
ateu: "Se Deus não existe, então
tudo é permitido". A lição que
nos ensina o terrorismo de hoje
é que, pelo contrário, se existe
um Deus, então tudo -até mesmo explodir centenas de espectadores inocentes- é permitido àqueles que afirmam agir diretamente em nome desse
Deus, como instrumentos de
Sua vontade.
SLAVOJ ZIZEK é filósofo esloveno e autor de
"Um Mapa da Ideologia" (ed. Contraponto). Ele
escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.
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