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Ponto de fuga
A maior emoção e a mais natural possível
Jorge Coli
especial para a Folha
É preciso tempo. Não porque elas sejam muito grandes.
Algumas cabem num pedaço de papel diminuto. Mas
bastam alguns segundos para que o olhar seja capturado e permaneça. A verdade dessas obras é inexplicável e
hipnotiza. São gravuras de Rembrandt, ora expostas no
Centro Cultural Banco do Brasil/SP. Há muito tempo,
Eugène Fromentin caracterizou a natureza particular
do claro-escuro: concisa e elíptica, densa de surpresas,
entremeada de subentendidos, ela incorpora o incerto,
o indefinido, o infinito. Nas mãos de Rembrandt, o claro-escuro é a matéria da sombra, que ele faz espessa ou
transparente, acentuando ou reduzindo a força da luz.
Em vez dos contrastes, emprega transições miraculosas. Refaz assim o mundo e veste-o de um realismo que
atinge a truculência. Homens e mulheres do povo urinam; um camponês grotesco, no trabalho da terra, grita: "Está frio". Em outra gravura, um parceiro retruca:
"Não, não está". Uma negra exibe seu corpo nu, de costas, alongado como a Vênus de Velázquez.
Os temas mais nobres, extraídos da Bíblia ou da mitologia, apresentam o mesmo imediatismo realista. A
mulher de Putifar agarra José, exibindo seu ventre inchado de lascívia obscena. Na descida da cruz, Cristo
desmonta-se, em contorções onde a pele enruga e o
grotesco se faz trágico. Nunca imagem nenhuma carregou tanta verdade humana. Rembrandt rompe com receitas e convenções, para, como escreveu uma vez, obter "a maior emoção e a mais natural possível".
Fim - A mostra "Rembrandt e a Arte da Gravura" deve
permanecer no CCBB de São Paulo até o dia 3 de novembro apenas. Quem não foi ver, corra. Trouxe tiragens de época, magníficas, cuja qualidade nenhuma reprodução mantém. Estão perfeitamente iluminadas.
Compõem um percurso claro e articulado. Às obras de
Rembrandt foram acrescentadas outras, de colaboradores, discípulos, seguidores e também de alguns nomes imensos, como Callot ou Picasso, que, de algum
modo, se ligaram ao grande mestre.
Descaso - A idéia é extraordinária. Tomar algumas
obras maiores do cinema, de Truffaut, Fellini, Lang, os
Irmãos Marx, Buster Keaton, entre outros, em cópias
novas; distribuí-las em várias cidades (São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Campinas, Ribeirão Preto), projetá-las com excelente qualidade em salas de grande afluência, fazendo cada título permanecer uma semana. Este é
o projeto que está sendo realizado pelo Festival Marlboro de Cinema. Pena que a divulgação seja precária, muito aquém do que seria merecido: nenhum destaque, informações minguadas, tanto sobre a natureza dos filmes quanto sobre a programação no seu todo, incluindo aqui as datas de exibição.
Colaboração - Antoine Seel envia comentários sobre o
filme "Rollerball" (2002), de John McTiernan. Aqui, um
excerto: "Os jogadores se entregam ao público, eles oferecem também a revolta, ou revolução, uma tomada de
consciência de classe (o filme todo confere carnes, sentimentos, aos lugares-comuns marxistas). O jogo não é
uma alienação, panem et circensis, um derivativo, é
uma jubilação, uma prática da infância em nós (como
mostram as primeiras corridas), é uma alegria comum
a todos, salvo àqueles que preferem o dinheiro: os malvados. O jogo fascina: as cores, os sons, a velocidade dos
corpos nas pistas de reflexos e de plástico. Na velocidade, os sentimentos de identificação se esgarçam, se fragmentam, se perdem quase, mas se reencontram num
plano mais amplo: entre os espectadores em geral (nós)
e os jogadores em geral. Não há morbidez, não há desejo de ver os corpos se esmagarem, pois o espetáculo
(alegria, medos, os sentimentos do espetáculo) ganha
tudo. Não há também "contaminação" da realidade no
jogo. É claro, seria possível ver, em "Rollerball", uma justificação da política norte-americana que busca o controle da Ásia Central. EUA opostos à Rússia (o antigo
colonizador); humanismo contra máfia, já que a Rússia
não passa de máfia nos filmes atuais. O ponto de vista
não seria ilegítimo, mas faltaria o essencial, a alegria e
humanidade do jogo".
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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