São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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As cores do corvo na literatura

Juan José Saer

A fama do corvo nunca foi boa, e não só no Ocidente, pois Bashô, o mestre japonês do haicai, estilizando a representação do lúgubre, escreveu no século 17: "Sobre um galho morto/ pousou um corvo./ Noite de outono". Por culpa de fabulistas e românticos, sempre se reservou ao corvo -a personagem mais fúnebre, quando não a mais ridícula, na distribuição de papéis abusivamente praticada entre as espécies animais- a função de simbolizar o estado de ânimo dos poetas. Graças a La Fontaine, todas as crianças da França sabem que a raposa pode, sem grande esforço, envolver as rebuscadas maquinações dos corvos para tê-los nas mãos. Em sua elegia pré-fabricada, Poe calunia diretamente a ave escura: qualquer pessoa que tenha observado a arrogante e quase mal-humorada indiferença dos corvos sabe que nenhum deles jamais se dignaria a pousar sobre um busto de Palas, num estúdio poeirento, para escutar as reflexões iterativas e um tanto batidas do poeta. O capítulo de "Pylon", de William Faulkner, que mostra um bando de jornalistas ávidos de sensacionalismo, intitula-se, como que por acaso, "Os Corvos". Já na opinião popular hispânica, "cuervo" e "avenegra" são, para os anticlericais, sinônimos de "padre" e, para os outros, de rábula tenebroso e venal.

Criatura múltipla
Para sorte do corvo (e para a nossa), os índios haidas, ou melhor, o que resta deles, pois já em 1951 sobreviviam não mais que 500 deles, têm uma opinião muito diferente sobre o assunto. Os exaltadores contos de "The Raven Steals the Light" (O Corvo Rouba a Luz), de Bill Reid e Robert Bringhurst, traduzidos para o espanhol por María Condor (se não se trata de um pseudônimo, esse nome deve-se ao acaso objetivo, sem dúvida inventado pelo corvo dos haidas) e que a editora espanhola Hiperión publicou há poucos meses sob o título de "Cuentos del Cuervo", com prefácio de Claude Lévi-Strauss, oferecem uma imagem muito diferente do estatuto, das capacidades, dos gostos e do comportamento do corvo em todos os cantos do universo, por mais afastados que sejam. Universo cuja criação, diga-se de passagem, também devemos a ele. Assim como os tsimshiamens, no centro, e os nootkas e os kwakiutles, no sul, os haidas, junto com os tlingist e os tinnehs, habitam desde tempos imemoriais o norte das Carlotas, na Colúmbia Britânica, a oeste do Canadá. Bringhurst diz em seu breve prólogo: "As ilhas recebem seu nome não dos haidas, que sempre viveram nelas, nem do corvo, que as pôs ali, meio que por descuido, mas de uma mulher que nunca as viu (...), a rainha Carlota, esposa do rei louco da Inglaterra, George 3º. Assim o corvo, que volta e meia chama uma massa-fétida de rosa, só para ver as confusões que isso pode causar, mais uma vez enganou todo mundo, tanto os haidas quanto os forasteiros (...)". O corvo dos haidas é uma criatura múltipla e complicada, capaz de ir roubar a luz para tirar das trevas o mundo dos homens e de roubar o salmão para presenteá-lo aos humanos -e, de quebra, lambiscar do peixe. Mas, por outro lado, quando um pescador vai para o mar em busca do seu sustento, o corvo, que é capaz de infinitas e mágicas metamorfoses, assume a forma do pescador e, com um pretexto qualquer, entra na casa e se deita com a mulher dele. Quando o surpreendem em alguma dessas estripulias, ele é literalmente moído a pauladas, e a sova continua até que "reste apenas uma papa de ossos esmigalhados, carne estraçalhada e penas esmagadas". E, embora amarrem esses restos a pesadas pedras e os joguem em alto-mar, não há jeito de se livrar realmente do corvo, "destinado a prosseguir eternamente suas inquietas vagabundagens em busca da satisfação de seus insaciáveis apetites". Esses apetites são a concupiscência, a curiosidade, a boa comida "e uma insaciável vontade de se intrometer em tudo e provocar situações (...)". Os contos de Bill Reid e Robert Bringhusrt, dois artistas haidas, são de uma comunicativa vivacidade e de uma maravilhosa graça. Livres de pruridos morais, mas também literários, narram com humor, desenvoltura e precisão as aventuras desse extraordinário personagem, que é ao mesmo tempo Dionísio, Zeus e Prometeu, mas também um desses velozes, fugidios, cruéis e ubíquos personagens de Tex Avery (o único cineasta norte-americano autenticamente imoral, no bom sentido da palavra). Segundo Lévi-Strauss, para narrar esses contos que condensam uma antiga e complexa tradição de bardos de muitas tribos, é necessária uma considerável erudição, mas Bill Reid, modestamente, chama essas histórias de "ligeiros entretenimentos, apenas versões tangenciais das grandes narrações antigas".

Negro e branco
Mas os contos do corvo têm o sabor dos mitos imemoriais, dessa extinta transição arcaica do mundo em que todo ser vivente convivia -ou, antes, se confundia- com a divindade. E os elaborados desenhos de Bill Reid que ilustram o volume nos restituem parte desse mundo de apetite e de luta, de trevas e de luz, de prazer e de crueldade, de morte e de metamorfose, de profundidade e de magia.
Em seu "Myths of the Origin of Fire" (Mitos da Origem do Fogo), James Frazer conta que, se o corvo é negro, para grande estremecimento de muitos poetastros, é justamente porque ousou roubar o fogo para dá-lo aos humanos: antes disso, ele era branco. Mas, como fracassou por duas vezes, o Grande Espírito dos sioux e de outras tribos do vale do Mississipi, enfurecido, o enegreceu. Já na versão cheroqui do mito, embora também tenha fracassado em seu intento, ele chegou tão perto do fogo que chamuscou a plumagem. Isso parece mais crível como origem de sua negrura.
Assim, a silhueta negra do corvo representaria a distinção que ele obteve ao buscar o fogo para os homens. Os sioux afirmam que ele só fracassou porque se demorou mais que o devido comendo carniça, e que por isso o Grande Espírito o castigou. Talvez seja verdade. Mas é lícito perguntar o que é mais imperdoável, se comer carniça humana quando não se tem outro repasto, ou espalhar, por vingança, cólera, patriotismo, interesse ou ambição, um tendal de cadáveres pelos campos do mundo.


Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém Nada Nunca" (Companhia das Letras).
Tradução de Sergio Molina.


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