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As cores do corvo na literatura
Juan José Saer
A fama do corvo nunca foi boa, e
não só no Ocidente, pois Bashô,
o mestre japonês do haicai, estilizando a representação do lúgubre, escreveu no século 17: "Sobre um galho morto/ pousou um corvo./ Noite de outono".
Por culpa de fabulistas e românticos,
sempre se reservou ao corvo -a personagem mais fúnebre, quando não a mais
ridícula, na distribuição de papéis abusivamente praticada entre as espécies animais- a função de simbolizar o estado
de ânimo dos poetas. Graças a La Fontaine, todas as crianças da França sabem
que a raposa pode, sem grande esforço,
envolver as rebuscadas maquinações dos
corvos para tê-los nas mãos.
Em sua elegia pré-fabricada, Poe calunia diretamente a ave escura: qualquer
pessoa que tenha observado a arrogante
e quase mal-humorada indiferença dos
corvos sabe que nenhum deles jamais se
dignaria a pousar sobre um busto de Palas, num estúdio poeirento, para escutar
as reflexões iterativas e um tanto batidas
do poeta. O capítulo de "Pylon", de William Faulkner, que mostra um bando de
jornalistas ávidos de sensacionalismo,
intitula-se, como que por acaso, "Os
Corvos". Já na opinião popular hispânica, "cuervo" e "avenegra" são, para os
anticlericais, sinônimos de "padre" e, para os outros, de rábula tenebroso e venal.
Criatura múltipla
Para sorte do corvo (e para a nossa), os índios haidas,
ou melhor, o que resta deles, pois já em
1951 sobreviviam não mais que 500 deles,
têm uma opinião muito diferente sobre o
assunto. Os exaltadores contos de "The
Raven Steals the Light" (O Corvo Rouba
a Luz), de Bill Reid e Robert Bringhurst,
traduzidos para o espanhol por María
Condor (se não se trata de um pseudônimo, esse nome deve-se ao acaso objetivo,
sem dúvida inventado pelo corvo dos
haidas) e que a editora espanhola Hiperión publicou há poucos meses sob o título de "Cuentos del Cuervo", com prefácio de Claude Lévi-Strauss, oferecem
uma imagem muito diferente do estatuto, das capacidades, dos gostos e do comportamento do corvo em todos os cantos
do universo, por mais afastados que sejam. Universo cuja criação, diga-se de
passagem, também devemos a ele.
Assim como os tsimshiamens, no centro, e os nootkas e os kwakiutles, no sul,
os haidas, junto com os tlingist e os tinnehs, habitam desde tempos imemoriais
o norte das Carlotas, na Colúmbia Britânica, a oeste do Canadá. Bringhurst diz
em seu breve prólogo: "As ilhas recebem
seu nome não dos haidas, que sempre viveram nelas, nem do corvo, que as pôs
ali, meio que por descuido, mas de uma
mulher que nunca as viu (...), a rainha
Carlota, esposa do rei louco da Inglaterra, George 3º. Assim o corvo, que volta e
meia chama uma massa-fétida de rosa,
só para ver as confusões que isso pode
causar, mais uma vez enganou todo
mundo, tanto os haidas quanto os forasteiros (...)".
O corvo dos haidas é uma criatura
múltipla e complicada, capaz de ir roubar a luz para tirar das trevas o mundo
dos homens e de roubar o salmão para
presenteá-lo aos humanos -e, de quebra, lambiscar do peixe. Mas, por outro
lado, quando um pescador vai para o
mar em busca do seu sustento, o corvo,
que é capaz de infinitas e mágicas metamorfoses, assume a forma do pescador e,
com um pretexto qualquer, entra na casa
e se deita com a mulher dele.
Quando o surpreendem em alguma
dessas estripulias, ele é literalmente moído a pauladas, e a sova continua até que
"reste apenas uma papa de ossos esmigalhados, carne estraçalhada e penas esmagadas". E, embora amarrem esses restos
a pesadas pedras e os joguem em alto-mar, não há jeito de se livrar realmente
do corvo, "destinado a prosseguir eternamente suas inquietas vagabundagens
em busca da satisfação de seus insaciáveis apetites". Esses apetites são a concupiscência, a curiosidade, a boa comida "e
uma insaciável vontade de se intrometer
em tudo e provocar situações (...)".
Os contos de Bill Reid e Robert Bringhusrt, dois artistas haidas, são de uma
comunicativa vivacidade e de uma maravilhosa graça. Livres de pruridos morais, mas também literários, narram com
humor, desenvoltura e precisão as aventuras desse extraordinário personagem,
que é ao mesmo tempo Dionísio, Zeus e
Prometeu, mas também um desses velozes, fugidios, cruéis e ubíquos personagens de Tex Avery (o único cineasta norte-americano autenticamente imoral, no
bom sentido da palavra).
Segundo Lévi-Strauss, para narrar esses contos que condensam uma antiga e
complexa tradição de bardos de muitas
tribos, é necessária uma considerável
erudição, mas Bill Reid, modestamente,
chama essas histórias de "ligeiros entretenimentos, apenas versões tangenciais
das grandes narrações antigas".
Negro e branco
Mas os contos do
corvo têm o sabor dos mitos imemoriais,
dessa extinta transição arcaica do mundo em que todo ser vivente convivia
-ou, antes, se confundia- com a divindade. E os elaborados desenhos de
Bill Reid que ilustram o volume nos restituem parte desse mundo de apetite e de
luta, de trevas e de luz, de prazer e de
crueldade, de morte e de metamorfose,
de profundidade e de magia.
Em seu "Myths of the Origin of Fire"
(Mitos da Origem do Fogo), James Frazer conta que, se o corvo é negro, para
grande estremecimento de muitos poetastros, é justamente porque ousou roubar o fogo para dá-lo aos humanos: antes
disso, ele era branco. Mas, como fracassou por duas vezes, o Grande Espírito
dos sioux e de outras tribos do vale do
Mississipi, enfurecido, o enegreceu. Já na
versão cheroqui do mito, embora também tenha fracassado em seu intento, ele
chegou tão perto do fogo que chamuscou a plumagem. Isso parece mais crível
como origem de sua negrura.
Assim, a silhueta negra do corvo representaria a distinção que ele obteve ao
buscar o fogo para os homens. Os sioux
afirmam que ele só fracassou porque se
demorou mais que o devido comendo
carniça, e que por isso o Grande Espírito
o castigou. Talvez seja verdade. Mas é lícito perguntar o que é mais imperdoável, se comer carniça humana quando não se
tem outro repasto, ou espalhar, por vingança, cólera, patriotismo, interesse ou
ambição, um tendal de cadáveres pelos campos do mundo.
Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém Nada Nunca" (Companhia das Letras). Tradução de Sergio Molina.
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