São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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ALEGRIA! ALEGRIA!!

Fernando Bonassi

A propósito... digamos... disso tudo... devo dizer... bem... é claro que eu fico alegre que vocês estejam alegres! Juro! Eu fico tão alegre de ver vocês alegres, mas tão alegre dessas suas alegrias, que nem tenho palavras pra expressar às tantas minha alegria por vocês contentes! A alegria miserável dos pobres; a alegria preocupada dos ricos; alegria histórica dos ciclos. A alegria nota dez dos estudiosos; alegria maledicente dos invejosos; a alegria irônica dos clínicos. A alegria crônica dos jornalistas; alegria cínica dos preguiçosos; alegria elevada dos alpinistas. A alegria chapiscada dos pedreiros; alegria martelada dos funileiros; alegria dourada dos garimpeiros. Que alegria! A alegria requenguela do banguela; alegria interessada dos bonzinhos; alegria alimentar dos pãezinhos. A alegria perfurada dos nervosos, alegria perversa dos invejosos; alegria roubada dos curiosos; a alegria relaxada dos massagistas; a alegria vigarista dos lobistas! A alegria esganada dos soldados e a alegria passageira dos coitados! Alegria ferina dos gatos & alegria ferida dos linchados! A alegria fardada dos escritores amarelados tomando chá de lírio e biscoitos de Maizena! Rir de pena! Rir de leve um riso pesado e medido. Um riso metido. A doce alegria dos confeiteiros, a alegria besta dos maconheiros! Alegria, alegria! Alegria engazopada nos postos de gasolina! Alegria engarrafada nas fábricas de bebida! A alegria blindada das mercedez estacionadas & a alegria encoxada na lotação esgotada! Assobiar! Tomar cana! Publicidade de felicidade! Propaganda de muamba! Boas notícias embrulhando peixe no dia seguinte! Pó de mico nos cinco sentidos! Cheiração de alegria dos narizes ávidos! Alegria dos machões e dos viados; das sandalinhas e dos sapatos! Alegria lá dentro! Alegria por fora! Alegria de enfiada! Uma alegria do cacete! Gozação infinita ou seu dinheirinho de volta! Vinte e cinco centímetros de alegria sem vaselina! Alegria dos homens, das mulheres e das meninas! Essa alegria dissimulada... quer dizer... disseminada... se esvai de uns e outros, por todos, pra um, configurando essa felicidade plena de sorrisos. Um fenômeno eletrizante! Feliz natal, feliz ano novo, feliz aniversário, feliz adversário, feliz dia das mães, feliz dia dos cães, feliz dia dos namorados, feliz dia dos desempregados, feliz dia da pátria, feliz páscoa, boa viagem, boas compras, boas férias, poucas e boas, é bom, é bom, é bom! Felicidades... felicidades! Química de cócegas! Solução feliz! Aliás, um feliz é o daqueles que ouve essas palavras! Puro refresco no meio das gargalhadas alheias! Alegria é uma correia! Um afago na sola do pé da cama! A chuva, a terra e a lama! Como poderia essa figura ridícula escapar ao bem-estar dessa alegria contagiante?! Uma alergia! Uma picada! Uma cintada! Tem quem gosta! Tem quem aposta! Tudo é alegria nessa orgia! E é justamente por força dessa alegria toda que eu fico assim... alegre! Realmente alegre! Muito alegre! Alegre mesmo! Emocionado! Alegre de chorar! Um rio de janeiro a dezembro escapando pelas margens borbulhantes! Um porto alegre onde cargueiros recheados encostam abanando os rabos! Três Marias enroscadas numa constelação de risadas! Toda essa alegria me deixa tão alegre, mas tão alegre, que cada degrau das nossas maravilhas é um sorriso onde eu piso. Rio direto. Rio de tudo. Rio cansado do riso suado! Rio de mim numa alegria só! A pura masturbação da minha risada! Auto ajuda pras almas penadas! Pernas abertas! Punhos fechados! Impossível saltar entre meus lábios arreganhados! Um riso por cima do outro por cima do um! Quanto que eu rio! Deve ser demais! Porque eu me alegro com todos os dentes! Indefinidamente! Um sorriso comovente! Trinta e duas peças peroladas à disposição de porrada! Sim senhor! Um riso aterrador! Risadas congestionadas resfriadas de espirros! Pigarros! Cigarros mordidos! Ah essa brancura de gargalhada no espelho! Alegria espalhada de reflexos! Um fio dental! Dois palitos de risada japonesa! A vala de alegria que me guia! Um saco de risadas ensaboadas! As gengivas desbotadas! Com a cara, a coragem ou a covardia, sigo rindo pelos meus dias! Quem diria! Era tudo o que eu queria! É ou não é! É, não é! Ô se é! Vejam vocês todos felizes: já nem tenho tempo de parar pra rir dessa alegria toda! Rio dormindo, rio traindo; rio correndo, rio parado; rio moendo carne, rio cortando bife; rio do que desmonta, rio fazendo conta; rio descontando, rio defecando! Rio no pronto socorro, rio no elevador; rio dando esporro, um riso congelador. Rio dos postes, dos mestres, das bombas e dos testes! Rio de susto, de busto, de cego e aleijado. Rio o riso descarado. Rio do congresso! Rio em excesso! Um riso de se arrepiar! Quem pode chora menos! Quem petisca não se arrisca! Rio em procissão, rio em decisão, rio em Cidade Tiradentes, rio na Consolação! Rio de enchente, rio em desabamento, rio em assalto, rio em casamento! Todas essas alegrias festejadas de quitutes! É pique! É pique! É pique, pique, pique! Tem que ter muito! Cento e cinquenta milhões de brindes fraturando copos! O riso está nos corpos. Solavancos de soluços! Que coisa mais linda! Mais cheia! É de graça! Risos em casa, risos no serviço; riso com parentes, riso com amigos; rimos o tombo dos inimigos; rimos com critério, rimos risos sérios! Risadas de cemitério: mortos com risada de algodão! Risos de comemoração! Rimos com respeito e pra desmoralizar! Rimos pra disfarçar! Alegria é rir de si! Rir de dó! De fá! De Sol e da Lua! Alegria jogada pela rua! Rir pra não chorar! Rir e vomitar! Uma congestão de felicidade! Rir dos monumentos, rir enquanto é tempo... então... estou rindo! Continuo nessa toada mais do que engraçada! Rio do bom, do melhor, do desprezível... uma risada grudando na outra, fazendo essa música rachada por dentro dos meus ouvidos! Uma salada! Uma proposta engraçada! Uma alegria de doer! Ontem eu ainda "estava" alegre, mas hoje eu "sou"! Nada abala minha alegria! Ai! Sou alegre até à carne! Exalo alegria por todos os poros escancarados! Um fedor hilariante! Quando eu vejo as suas alegrias jubilosas, por exemplo, minha própria alegria abre o bico... quer dizer... a boca! Sou todos esses sorrisos às gargalhadas! Insuportavelmente alegre! Putaquipariu! Deus que me perdoe! Eu rio sim, estou vivendo! Um arrepio na inteligência, um soco no baço; pela audiência, pelo traço; um escorregão, uma torta de limão arremessada num rosto aparvalhado! Bêbado, escornado! Uma palhaçada dessas! Um bolo pra repartir! Um Brasil pelo ralo! A língua coberta de calos! Uma piada desgraçada! As pupilas dilatadas! Inútil resistir! É tanta essa alegria toda que até parece com a minha pessoa de verdade, embora eu mesmo não tenha nada a ver com isso... aliás não tenho... o que me deixa... digamos... por isso tudo... devo dizer... bem... insuportavelmente alegre... a propósito.


Fernando Bonassi é colunista da Folha, escritor, roteirista, cineasta e dramaturgo, autor de peças como "Preso entre Ferragens" e "Apocalipse 1,11".


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