São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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RETRADUÇÕES DO INCONSCIENTE


Organizada pela escritor Adam Phillips, começa a sair no Reino Unido uma nova versão para o inglês das obras completas de Freud que privilegia os aspectos estéticos e literários dos textos do psicanalista austríaco


Sérgio Telles
especial para a Folha

Um importante acontecimento editorial ocorre neste mês de julho em Londres. Serão lançados os dois primeiros volumes -"Psicopatologia da Vida Cotidiana" e "O Caso Schreber"- de uma série de 15 do que está sendo chamado de "novas traduções literárias de Freud", um empreendimento da editora Penguin, organizado pelo psicanalista e escritor Adam Phillips.
Phillips fez uma escolha polêmica. Em vez de manter os padrões habituais de uma tradução de trabalhos científicos, que seguem uma disposição cronológica, tentam manter uma uniformidade técnica nos termos usados e respeitam convenções e referências estabelecidas, Phillips trata a obra freudiana com a liberdade somente possível diante de obras literárias, em que a tradução segue exigências exclusivamente estéticas e formais. Para tanto, Phillips não procurou nenhum rigor técnico-científico, dando cada volume para um tradutor diferente e distante do mundo psi. São todos eles literatos, ligados às humanidades. Além disso, tendo como prioridade o leitor leigo, Phillips ignora a cronologia e dá uma organização temática aos textos freudianos.
Phillips trabalhou no Charing Cross Hospital de Londres e é autor de livros de muito sucesso no mundo anglo-saxão. São seus os títulos "Winnicott", "Beijo, Cócegas, Tédio", "O Flerte", "Monogamia" [lançados no Brasil pela Cia. das Letras], "Terrors and Experts", "The Beast in the Nursery", "Darwin's Worms", "Promises, Promises" e "Houdini's Box - The Art of Escape".

O problema epistemológico
A escolha de Phillips por uma tradução "literária" da obra de Freud vai frontalmente contra o esforço de muitos -a começar pelo próprio James Strachey, responsável pela famosa "Standard Edition"- que tentam reconhecer e valorizar, dentro do texto freudiano, de inegável valor literário, um vocabulário técnico preciso, que dá base e solidez a importantes conceitos e hipóteses teóricos, com isso evidenciando o cuidado de Freud em manter a coerência interna, a formulação clara e transmissível do saber que fundou. Em que pesem os equívocos da tradução de Strachey, sua postura -o reconhecer e uniformizar as hipóteses centrais da teoria- é a mesma que sustentou outros, como Laplanche e Pontalis, e esse esforço se concretizou, por exemplo, na excelente tradução argentina da editora Amorrortu. Neste momento, a psicanálise se depara com insistentes ataques que questionam sua cientificidade, desde que, seguindo critérios neopositivistas, efetivamente ela não pode ser considerada uma "ciência". Trata-se de um importante problema epistemológico, e cabe aos psicanalistas mostrar como o saber inaugurado por Freud inequivocamente pertence ao campo da ciência, no sentido de produtora de conhecimentos, muito embora a forma pela qual os produz difira radicalmente daquela das ciências ditas "hard" ou "duras" (física e química, por exemplo). Na verdade, a psicanálise questiona as bases da antiga epistemologia, apesar de não conseguir ainda organizar critérios de convalidação que se coadunem com as características específicas de seu próprio campo. Neste sentido, querer reduzir a obra de Freud à "literatura", como de certa forma propõe Phillips, é um desserviço à causa, um grande equívoco. Por outro lado, a escolha de Phillips coloca em pauta uma questão sempre muito interessante: a relação entre psicanálise e literatura. É muito conhecida a afirmação de Freud segundo a qual os grandes escritores eram profundos conhecedores do inconsciente e a ele tinham acesso intuitivamente, ao passo que ele (Freud) só ali chegava por meio de muito esforço, de muito trabalho, de muita ciência. De fato, muito há em comum entre psicanálise e literatura. Ambas lidam com a linguagem e com a expressão de estados d'alma, idéias, sentimentos, afetos, sofrimento e dores. Ambas interpretam, representam, simbolizam, produzem sentido onde antes ele não existia. A literatura é a produção espontânea de um artista, decorrente de um dom que ele polirá na prática e no uso dos cânones estéticos de seu tempo e seu lugar. A psicanálise é um procedimento científico -com as ressalvas já feitas-, descoberto por Freud, de acesso ao inconsciente, que se organiza num corpo teórico consistente e tem efeitos terapêuticos. A literatura dá significados, representação e simbolização àquilo que era inominável e sem sentido; e o faz de tal maneira que todos os homens possam ali se mirar e se reconhecer. A psicanálise faz o mesmo de forma singular, ouvindo no discurso de um único sujeito a produção fragmentária e desprezível dos restos da consciência, ali captando os significantes até então ignorados por aquele que fala. "A arte deve servir para alguma coisa, só não sei para quê", disse Picasso em uma de suas provocações. Em minha opinião, uma das maiores "utilidades" da arte é representar, simbolizar, exprimir e significar o essencialmente humano. Com isso, ela -tal como a psicanálise- proporciona a produção de um tipo de conhecimento sobre a própria condição humana que de antemão é negado e suprimido pelo que se considera, segundo os critérios neopositivistas, "ciência". A clássica contraposição entre arte e ciência advém dos critérios que delimitam e excluem cada campo, mas essa forma de contrapô-las não reconhece onde elas se aproximam, configurando um paradoxo: a arte, tal como a ciência, também produz um conhecimento, e essa produção de conhecimento não é abarcada pelos critérios usados pela ciência. Assim o conhecimento proporcionado pela arte se aproxima do conhecimento proporcionado pela psicanálise. Elas suscitam o mesmo problema epistemológico mencionado acima. Sob esse ângulo, a proposta de uma tradução "literária" de Freud ganha uma nova perspectiva.

Domínio público à vista
Voltando ao acontecimento editorial, o que ocorre é que está expirando a exclusividade do copyright da "Standard Edition", o que faz com que estejam sendo planejadas novas traduções da obra de Sigmund Freud. Já saiu, por exemplo, uma nova tradução de "A Interpretação dos Sonhos", pela Oxford University Press, realizada por Joyce Crick.
A Hogath Press, casa editoral criada por Virginia e Leonard Woolf que detinha os direitos autorais da "Standard Edition", está realizando uma nova tradução da obra de Freud, sob o comando do psicanalista Mark Solms. Essa nova edição será "pesadamente anotada", terá um glossário abrangente, um novo índice, bibliografia e alguns ensaios sobre o processo de tradução. Também incluirá os escritos neurocientíficos de Freud e 40 outros trabalhos inéditos que não foram incluídos ou não estavam disponíveis quando a primeira tradução foi realizada. Haverá também uma versão em CD-ROM, além da versão on-line.
Aqui mesmo, no Brasil, está em andamento um ambicioso projeto da editora Imago de uma nova tradução das obras de Freud, a cargo de Luiz Hanns.


Sérgio Telles é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e autor de "Peixe de Bicicleta" (EdUFSCar), entre outros.


The Psychopathology of Everyday Life
305 págs., 8,99 libras de Sigmund Freud. Trad. Andrea Bell. Ed. Penguin



The Schreber Case
96 págs, 6,99 libras de Sigmund Freud. Trad. Andrew Webber. Ed. Penguin.




Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, à livraria Cultura (tel. 0/xx/11/ 3285-4033 ) e, no RJ, à livraria Marcabru (tel. 0/ xx/21/2294-5994).



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