|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
RETRADUÇÕES DO INCONSCIENTE
Organizada pela escritor Adam Phillips, começa a sair no Reino Unido uma nova versão para o inglês das obras completas de Freud que privilegia os aspectos estéticos e literários dos textos do psicanalista austríaco
|
Sérgio Telles
especial para a Folha
Um importante acontecimento editorial ocorre
neste mês de julho em Londres. Serão lançados os dois primeiros volumes -"Psicopatologia da Vida Cotidiana" e "O Caso Schreber"- de uma série de 15 do que está sendo chamado
de "novas traduções literárias de Freud", um empreendimento da editora Penguin, organizado pelo psicanalista e escritor Adam Phillips.
Phillips fez uma escolha polêmica. Em vez de manter
os padrões habituais de uma tradução de trabalhos
científicos, que seguem uma disposição cronológica,
tentam manter uma uniformidade técnica nos termos
usados e respeitam convenções e referências estabelecidas, Phillips trata a obra freudiana com a liberdade somente possível diante de obras literárias, em que a tradução segue exigências exclusivamente estéticas e formais. Para tanto, Phillips não procurou nenhum rigor
técnico-científico, dando cada volume para um tradutor diferente e distante do mundo psi. São todos eles literatos, ligados às humanidades. Além disso, tendo como prioridade o leitor leigo, Phillips ignora a cronologia
e dá uma organização temática aos textos freudianos.
Phillips trabalhou no Charing Cross Hospital de Londres e é autor de livros de muito sucesso no mundo anglo-saxão. São seus os títulos "Winnicott", "Beijo, Cócegas, Tédio", "O Flerte", "Monogamia" [lançados no
Brasil pela Cia. das Letras], "Terrors and Experts", "The
Beast in the Nursery", "Darwin's Worms", "Promises,
Promises" e "Houdini's Box - The Art of Escape".
O problema epistemológico
A escolha de Phillips por uma tradução "literária" da obra de Freud vai
frontalmente contra o esforço de muitos -a começar
pelo próprio James Strachey, responsável pela famosa
"Standard Edition"- que tentam reconhecer e valorizar, dentro do texto freudiano, de inegável valor literário, um vocabulário técnico preciso, que dá base e solidez a importantes conceitos e hipóteses teóricos, com
isso evidenciando o cuidado de Freud em manter a coerência interna, a formulação clara e transmissível do saber que fundou. Em que pesem os equívocos da tradução de Strachey, sua postura -o reconhecer e uniformizar as hipóteses centrais da teoria- é a mesma que
sustentou outros, como Laplanche e Pontalis, e esse esforço se concretizou, por exemplo, na excelente tradução argentina da editora Amorrortu.
Neste momento, a psicanálise se depara com insistentes ataques que questionam sua cientificidade, desde
que, seguindo critérios neopositivistas, efetivamente ela
não pode ser considerada uma "ciência". Trata-se de
um importante problema epistemológico, e cabe aos
psicanalistas mostrar como o saber inaugurado por
Freud inequivocamente pertence ao campo da ciência,
no sentido de produtora de conhecimentos, muito embora a forma pela qual os produz difira radicalmente
daquela das ciências ditas "hard" ou "duras" (física e
química, por exemplo).
Na verdade, a psicanálise questiona as bases da antiga
epistemologia, apesar de não conseguir ainda organizar
critérios de convalidação que se coadunem com as características específicas de seu próprio campo.
Neste sentido, querer reduzir a obra de Freud à "literatura", como de certa forma propõe Phillips, é um desserviço à causa, um grande equívoco.
Por outro lado, a escolha de Phillips coloca em pauta
uma questão sempre muito interessante:
a relação entre psicanálise e literatura. É
muito conhecida a afirmação de Freud
segundo a qual os grandes escritores
eram profundos conhecedores do inconsciente e a ele tinham acesso intuitivamente, ao passo que ele (Freud) só ali
chegava por meio de muito esforço, de
muito trabalho, de muita ciência.
De fato, muito há em comum entre psicanálise e literatura. Ambas lidam com a
linguagem e com a expressão de estados
d'alma, idéias, sentimentos, afetos, sofrimento e dores. Ambas interpretam, representam, simbolizam, produzem sentido onde antes ele não existia.
A literatura é a produção espontânea
de um artista, decorrente de um dom
que ele polirá na prática e no uso dos cânones estéticos de seu tempo e seu lugar.
A psicanálise é um procedimento científico -com as ressalvas já feitas-, descoberto por
Freud, de acesso ao inconsciente, que se organiza num
corpo teórico consistente e tem efeitos terapêuticos. A
literatura dá significados, representação e simbolização
àquilo que era inominável e sem sentido; e o faz de tal
maneira que todos os homens possam ali se mirar e se
reconhecer. A psicanálise faz o mesmo de forma singular, ouvindo no discurso de um único sujeito a produção fragmentária e desprezível dos restos da consciência, ali captando os significantes até então ignorados
por aquele que fala.
"A arte deve servir para alguma coisa, só não sei para
quê", disse Picasso em uma de suas provocações. Em
minha opinião, uma das maiores "utilidades" da arte é
representar, simbolizar, exprimir e significar o essencialmente humano. Com isso, ela -tal como a psicanálise- proporciona a produção de um tipo de conhecimento sobre a própria condição humana que de antemão é negado e suprimido pelo que se considera, segundo os critérios neopositivistas, "ciência".
A clássica contraposição entre arte e ciência advém
dos critérios que delimitam e excluem cada campo, mas
essa forma de contrapô-las não reconhece onde elas se
aproximam, configurando um paradoxo: a arte, tal como a ciência, também produz um conhecimento, e essa
produção de conhecimento não é abarcada pelos critérios usados pela ciência. Assim o conhecimento proporcionado pela arte se aproxima do conhecimento
proporcionado pela psicanálise. Elas suscitam o mesmo
problema epistemológico mencionado acima. Sob esse
ângulo, a proposta de uma tradução "literária" de
Freud ganha uma nova perspectiva.
Domínio público à vista
Voltando ao acontecimento editorial, o que ocorre é que está expirando a exclusividade do copyright da "Standard Edition", o que
faz com que estejam sendo planejadas novas traduções
da obra de Sigmund Freud. Já saiu, por exemplo, uma
nova tradução de "A Interpretação dos Sonhos", pela
Oxford University Press, realizada por Joyce Crick.
A Hogath Press, casa editoral criada por Virginia e
Leonard Woolf que detinha os direitos autorais da
"Standard Edition", está realizando uma nova tradução
da obra de Freud, sob o comando do psicanalista Mark Solms. Essa nova edição
será "pesadamente anotada", terá um
glossário abrangente, um novo índice,
bibliografia e alguns ensaios sobre o processo de tradução. Também incluirá os
escritos neurocientíficos de Freud e 40
outros trabalhos inéditos que não foram
incluídos ou não estavam disponíveis
quando a primeira tradução foi realizada. Haverá também uma versão em CD-ROM, além da versão on-line.
Aqui mesmo, no Brasil, está em andamento um ambicioso projeto da editora
Imago de uma nova tradução das obras
de Freud, a cargo de Luiz Hanns.
Sérgio Telles é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e autor de "Peixe de Bicicleta" (EdUFSCar), entre outros.
The Psychopathology
of Everyday Life
305 págs., 8,99 libras de Sigmund Freud. Trad. Andrea Bell. Ed. Penguin
The Schreber Case
96 págs, 6,99 libras de Sigmund Freud. Trad. Andrew Webber. Ed. Penguin.
Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, à livraria
Cultura (tel. 0/xx/11/ 3285-4033 ) e, no RJ, à livraria Marcabru (tel. 0/ xx/21/2294-5994).
Texto Anterior: Texto faz parte de série de obras literárias Próximo Texto: O Freud de cabeceira de... Índice
|