UOL


São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

EM ARTIGO QUE ANTECEDE LIVRO DE ENSAIOS DO SOCIÓLOGO FRANCISCO DE OLIVEIRA, O AUTOR DE "AO VENCEDOR AS BATATAS" DISCUTE O SUBDESENVOLVIMENTO E A HIPÓTESE DO SURGIMENTO DE UMA NOVA CLASSE SOCIAL NO BRASIL

PREFÁCIO COM PERGUNTAS

por Roberto Schwarz

 "Venceu o sistema de Babilônia e o garção de costeleta"
Oswald de Andrade, 1946

O poema em epígrafe condensa, em chave debochada, a decepção histórica de um poeta modernista e libertário com o curso do pós-guerra. As derrotas do nazi-fascismo na Europa e da ditadura Vargas no Brasil haviam sido momentos de esperança incomum, que entretanto não abriram as portas a formas superiores de sociedade. No que nos tocava, a vitória ficara com o sistema de Babilônia, quer dizer, o capitalismo, e com o garção de costeleta, quer dizer, a estética kitsch. O resultado da fermentação artística e social dos anos 20 e 30 do século passado acabava sendo esse.
Um ciclo depois, guardadas as diferenças de gênero, os ensaios de Francisco de Oliveira expõem um anticlímax análogo, ligado ao esgotamento do desenvolvimentismo, que também vai se fechando sem cumprir o que prometia. Escritos com 30 anos de intervalo, a "Crítica à Razão Dualista" (1972) e "O Ornitorrinco" (2003) representam, respectivamente, momentos de intervenção e de constatação sardônica. Num, a inteligência procura clarificar os termos da luta contra o subdesenvolvimento; no outro, ela reconhece o monstrengo social em que, até segunda ordem, nos transformamos.
Note-se que o primeiro título aludia à "Crítica da Razão Dialética", o livro então recente em que Sartre procurava devolver à atualidade o marxismo, a própria dialética e a revolução, sob o signo de uma filosofia da liberdade. Ao passo que a comparação com o ornitorrinco, um bicho que não é isso nem aquilo ("herói sem nenhum caráter"?), serve ao crítico para sublinhar a feição incongruente da sociedade brasileira, considerada mais no que veio a ser do que nas suas chances de mudar.
O ânimo zoográfico da alegoria, concebida por um petista da primeira hora na própria oportunidade em que o Partido dos Trabalhadores chega à Presidência da República, não passará despercebido e fará refletir. O paralelo com Oswald, enfim, interessa também porque leva a recapitular a lista comprida de nossas frustrações históricas, que vêm do século 19, sempre ligadas ao desnível tenaz que nos separa dos países-modelo e à idéia de o transpor por meio de uma virada social iluminada.
A transformação do Brasil em ornitorrinco se completou, segundo Francisco de Oliveira, com o salto das forças produtivas a que assistimos em nossos dias. Este foi dado pelos outros e não é fácil de repetir. A terceira revolução industrial combina a mundialização capitalista a conhecimentos científicos e técnicos, os quais estão sequestrados em patentes, além de submetidos a um regime de obsolescência acelerada, que torna inútil a sua aquisição ou cópia avulsa. Do ponto de vista nacional, o desejável seria incorporar o processo no seu todo, o que entretanto supõe gastos em educação e infra-estrutura que parecem fora do alcance de um país pobre e incapaz de investir. Nessas circunstâncias de neo-atraso, os traços herdados do subdesenvolvimento passam por uma desqualificação suplementar, que compõe a figura do ornitorrinco.
No campo dos trabalhadores, a nova correlação de forças leva ao desmanche dos direitos conquistados ao longo da quadra anterior. A extração da mais-valia encontra menos resistência e o capital perde o efeito civilizador que pudesse ter. A tendência vai para a informalização do trabalho, para a substituição do emprego pela ocupação ou, ainda, para a desconstrução da relação salarial. A liga do trabalho rebaixado com a dependência externa, consolidada na semi-exclusão científico-técnica do país, aponta para a sociedade derrotada. As reflexões do autor a esse respeito e a respeito das novas feições do trabalho abstrato darão pano para discussão.
Também do lado da propriedade e do mando há reconfiguração, que reflui sobre o passado. Contra as explicações automáticas pelo interesse material imediato ou pela tradição, o acento cai no aspecto consciente das escolhas, dotadas de certa liberdade, o que aliás só lhes agrava o teor. Para o período do subdesenvolvimento, Francisco de Oliveira insiste na opção das classes dominantes por formas de divisão do trabalho que preservassem a dominação social corrente, ainda que ao preço de uma posição internacional medíocre. Retoma o argumento de Fernando Henrique Cardoso, que pouco antes do golpe de 1964 dizia, contrariando a voz comum na esquerda, que a burguesia industrial havia preferido a "condição de sócio-menor do capitalismo ocidental" ao risco de ver contestada a sua hegemonia mais à frente. Diante dessa desistência histórica, o candidato a levar avante o desenvolvimento econômico do país passaria a ser a massa urbana organizada. "No limite a pergunta será, então, subcapitalismo ou socialismo?" (em "Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico", SP, Difusão Européia do Livro, 1964, págs. 186-7).

À luz das primeiras medidas do novo governo, Francisco de Oliveira estima que o núcleo dos partidos adversários na verdade compõe duas faces de uma nova e mesma classe

Grão de otimismo
A 40 anos de distância, Francisco de Oliveira vai catar naquela mesma desistência um inesperado grão de otimismo, mas de otimismo para o passado, que por contraste escurece o presente: se houve escolha e decisão, a "porta da transformação" estivera aberta. Mesmo não aproveitadas ou deliberadamente recusadas, as brechas do período circunscrito pela segunda revolução industrial -quando ciência e tecnologia ainda não estavam monopolizadas- existiam. Conforme notou Paulo Arantes num debate sobre "O Ornitorrinco", o raciocínio alimenta alguma saudade do subdesenvolvimento e de suas lutas, justificada em retrospecto pelo cerco atual. A tese mais polêmica e contra-intuitiva do ensaio refere-se à formação de uma nova classe social no país. Como a análise de classe está fora de moda, não custa reconhecer o interesse fulminante que lhe é próprio, desde que não se reduza à recitação de um catecismo. A partir das "recentes convergências programáticas entre o PT e o PSDB" e do "aparente paradoxo de que o governo de Lula realiza o programa de FHC, radicalizando-o", o autor observa que "não se trata de equívoco, mas de uma verdadeira nova classe social, que se estrutura sobre, de um lado, técnicos e intelectuais "doublés" de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e operários transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT. A identidade dos dois casos reside no controle do acesso aos fundos públicos, no conhecimento do "mapa da mina'". O leitor julgará por conta própria a força explicativa da hipótese, as observações sociais e históricas em que se apóia, as suas consequências para uma teoria atualizada das classes, a sua originalidade e coragem intelectual e sobretudo as implicações que ela tem para a política. De nossa parte, assinalamos apenas a sua ironia objetiva. Para decepção dos socialistas, a centro-esquerda formada na luta contra a ditadura não resistiu aos anos da redemocratização. A divisão cristalizou-se no antagonismo partidário-eleitoral entre esquerda e centro-direita, acompanhado das correspondentes adjetivações recíprocas. Agora, passados dez anos de governo da centro-direita, a vitória de Lula nas eleições pareceria um ponto alto desse enfrentamento. Não obstante, à luz das primeiras medidas do novo governo, Francisco de Oliveira estima que o núcleo dos partidos adversários na verdade compõe duas faces de uma nova e mesma classe. Suscitada pelas condições recentes, esta faz coincidirem os ex-aliados, que no momento da abertura política, diante da tarefa de corrigir os estragos da ditadura e do milagre econômico, se haviam desunido. O reencontro, dentro da maior contrariedade e antipatia mútuas, não se deve às boas tarefas antigas, mas a uma pauta nova, ditada pelas necessidades presentes e sempre anti-sociais do capital, cujo domínio se aprofunda. Ainda nessa direção, o autor observa que os principais fundos de inversão do país são propriedade de trabalhadores, o que faria um desavisado imaginar que está diante de uma sociedade socialista. Acontece que o ornitorrinco não dispõe de autocompreensão ético-política e que a economia dos trabalhadores é empregada como se não fosse nada além de capital, o que não deixa de ser, por sua vez, uma opção. O paralelo se completa com a conversão tecnocrática da intelectualidade peessedebista, vinda -vale a pena lembrar- das lutas sociais contra o regime militar e da anterior militância de esquerda. Num sentido que mereceria precisões, o ornitorrinco deixou de ser subdesenvolvido, pois as brechas propiciadas pela segunda revolução industrial, que faziam supor possíveis os indispensáveis avanços recuperadores, se fecharam. Nem por isso ele é capaz de passar para o novo regime de acumulação, para o qual lhe faltam os meios. Restam-lhe as transferências de patrimônio, em especial as privatizações, que não são propriamente acumulação e não diminuem as desigualdades sociais. Trata-se de um quadro de "acumulação truncada" -cuja mecânica econômica eu não saberia avaliar- em que o país se define pelo que não é; ou seja, pela condição subdesenvolvida, que já não se aplica, e pelo modelo de acumulação, que não alcança. Este não-ser naturalmente existe, embora a sua composição interna e sua dinâmica ainda não estejam identificadas, razão pela qual ele é comparado a um bicho enigmático e disforme. Seja como for, não há uma estrada conhecida e muito menos pavimentada que leve da posição atrasada à adiantada, ou melhor, da perdedora à vencedora. Se é que o caminho existe, ele não obedece às generalidades ligadas a uma noção universalista do progresso, à qual bastasse obedecer. Pelo contrário, é no curso normal deste, em sua figura presente, reduzida à precedência dos preceitos do mercado, que se encontra o motor do desequilíbrio. A consideração dialética do progresso, visto objetivamente pelos vários aspectos que vai pondo à mostra, sem ilusão providencial ou convicção doutrinária a seu respeito, sem ocultação de suas consequências regressivas, é uma das qualidades deste ensaio. Para fazer a diferença, lembremos que em nossa esquerda e ex-esquerda o caráter progressista do progresso é artigo de fé, meio inocente e meio ideológico. De outro ângulo, note-se como é vertiginoso e inusitado o andamento das categorias: estão em formação, já perderam a atualidade, não vieram a ser, trocam de sentido, são alheias etc. O desencontro é a regra. Uma classe-chave perde a relevância, entra em cena outra nova, de composição "chocante"; o desenvolvimento das forças produtivas desgraça uma parte da humanidade, em lugar de salvá-la; o subdesenvolvimento deixa de existir, não assim as suas calamidades; o trabalho informal, que havia sido um recurso heterodoxo e provisório da acumulação, se transforma em índice de desagregação social e assim por diante.

Atualismo
No estilo da dialética esclarecida, o limiar das mudanças é exato, não é determinado por uma construção doutrinária, mas é sim fixado no bojo de uma totalização provisória e heurística, a qual se pretende ligada ao curso efetivo das coisas. Trata-se de um raro exemplo de marxismo amigo da pesquisa empírica. O privilégio definitório do presente é forte ("O crítico precisa ter a atualidade bem agarrada pelos chifres", Walter Benjamin), mas não é guiado pelo desejo de aderir à correlação de forças dominante ou de estar na crista da onda nem muito menos pela vergonha de chorar o leite derramado ou pelo medo de dar murro em ponta de faca (pelo contrário, o sociólogo no caso tem perfil quixotesco). O atualismo reflete uma exigência teórica, bem como a aspiração à efetividade do pensamento, como parte de sua dignidade moderna. À sua luz, desconhecer a tendência nova ou a data vencida de convicções que estão na praça seria uma ignorância.
Nem por isso o presente e o futuro são palatáveis ou melhores que as formas ou aspirações que perderam o fundamento. As denúncias que as posições lançam umas contra as outras devem ser acompanhadas sem preconceito, como elementos de saber. Esse atualismo sem otimismo ou ilusões é uma posição complexa, profundamente real, base de uma consciência que não se mutila, ao mesmo tempo que é rigorosa.
Em certo plano, a definição pelo que não é reflete um momento de desagregação. Em lugar dos impasses do subdesenvolvimento, com a sua amarração conhecida e socialmente discutida, organizada em âmbito nacional, vêm à frente os subsistemas mais ou menos avulsos do conjunto anterior, que por enquanto impressionam mais pelo que já não virão a ser do que pela ordem alheia e pouco acessível que passaram a representar.
Por outro lado, a situação convida a uma espécie de atualismo curto, avesso à preocupação nacional e à memória da experiência feita, as quais acabam de sofrer uma desautorização histórica. Pois bem, o esforço de Francisco de Oliveira, energicamente voltado para a identificação da nova ordem de coisas, não acata esse encurtamento, que seria razoável chamar positivista, a despeito da roupagem pós-moderna. A resistência confere ao "Ornitorrinco" a densidade problemática alta, em contraste com o rosa kitsch e o "é isso aí" do progressismo impávido. Trata-se de aprofundar a consciência da atualidade através da consideração encompridada de seus termos, que reconheça a base que eles têm noutra parte, no passado, noutro setor do campo social, no estrangeiro etc.
Assim, não é indiferente que o capital se financie com dinheiro dos trabalhadores, que os operadores do financiamento sejam sindicalistas, que os banqueiros sejam intelectuais, que a causa cristalizadora da nova fragmentação seja um progresso feito alhures. São determinações reais, cuja supressão produz a inconsciência social, algo daquela indiferenciação em que Marx via o serviço prestado ao establishment pela economia vulgar. Ao insistir nelas e na irracionalidade social que elas tornam tangível, Francisco de Oliveira procura trazer a consciência à altura necessária para criticar a ordem. Ou procura dar à consciência razões claras de revolta, remorso, vergonha, insatisfação etc., que a inquietem.
Numa boa observação, que reflete o adensamento da malha mundial e contradiz as nossas ilusões de normalidade, o autor aponta a marca da "exceção permanente" no dia-a-dia brasileiro. Com perdão dos compatriotas que nos supõem no Primeiro Mundo, como não ver que o mutirão da casa própria não vai com a ordem da cidade moderna (embora na prática local vá muito bem), que o trabalho informal não vai com o regime da mercadoria, que o patrimonialismo não vai com a concorrência entre os capitais e assim por diante? Há um inegável passo à frente no reconhecimento e na sistematização do contraste entre o nosso cotidiano e a norma supranacional, pela qual também nos pautamos. O avanço nos torna -quem diria- contemporâneos de Machado de Assis, que já havia notado no contrabandista de escravos a exceção do "gentleman" vitoriano, no agregado verboso a exceção do cidadão compenetrado, nas manobras da vizinha pobre a exceção da paixão romântica, nos conselhos de um parasita de fraque a exceção do homem esclarecido. A dinâmica é menos incompatível com a estática do que parece. Dito isso, há maneiras e maneiras de enfrentar o desajuste, que a seu modo resume a inserção do país (ou do ex-país, ou semipaís, ou região) na ordem contemporânea.
Concebido em espírito de revisão conclusiva, "O Ornitorrinco" não nega as perspectivas da "Crítica à Razão Dualista", mas aponta razões para a sua derrota. A reunião dos dois ensaios num volume representa, além de um novo diagnóstico de época, o estado atual das esperanças do autor: uma prestação de contas teórica e uma auto-historicização, em linha com o propósito de trabalhar por formas de consciência expandida. Indicada a diferença, é preciso convir que a "Crítica", escrita com grande fibra combativa no auge da ditadura militar, em pleno milagre econômico e massacre da oposição armada, já lutava em posto semiperdido. A sua descrição da barbárie do processo brasileiro só não quadrava com a imagem de um monstro porque vinha animada pela perspectiva de auto-superação.
A tese célebre da "Crítica à Razão Dualista" dizia algo inusitado sobre o padrão primitivo da agricultura brasileira da época bem como sobre a peculiar persistência de formas de economia de subsistência no âmbito da cidade grande ou sobre o desmoralizante inchaço do terciário etc. Para o autor, contrariando o senso comum, estes não eram vestígios do passado, mas partes funcionais do desenvolvimento moderno do país, uma vez que contribuíam para o baixo custo da mão-de-obra em que se apoiava a nossa acumulação. O lance era dialético e de mestre, com repercussão em duas frentes. Por um lado, a responsabilidade pelo teor precário da vida popular era atribuída à dinâmica nova do capitalismo, ou seja, ao funcionamento contemporâneo da sociedade, e não à herança arcaica que arrastamos, mas que não nos diz respeito. Por outro, essa mesma precariedade era essencial à acumulação econômica, e nada mais errado que combatê-la como uma praga estranha ao organismo. Muito pelo contrário, era preciso reconhecê-la como parte de um processo acelerado de desenvolvimento, no curso do qual a pobreza quase desvalida se elevaria ao salário decente e à cidadania, e o país conquistaria nova situação internacional. A pobreza e a sua superação eram a nossa chance histórica! Sem entrar no mérito fatual da hipótese, a vontade política que ela expressa, segundo a qual os pobres não podem ser abandonados à sua sorte, sob pena de inviabilizar o progresso, salta aos olhos. Em lugar do antagonismo assassino entre civilização e barbárie, que vê os pobres como lixo, entrava a idéia generosa de que o futuro dependia de uma milagrosa integração nacional, em que a consciência social-histórica levasse de vencida o imediatismo. Uma idéia que em seu momento deu qualidade transcendente aos escritos de Celso Furtado, às visões da miséria do cinema novo, bem como à "teoria da dependência".
Com originalidade conceitual e afinidades populares trazidas talvez do Nordeste, no pólo oposto ao progressismo da ditadura, Francisco de Oliveira imaginava um esquema moderno de viabilização nacional, que convocava o país à consciência inclusiva por oposição a excludente, como momento de autotransformação. Do ponto de vista econômico tratava-se de criticar o dualismo da Cepal [Comissão Econômica para a América Latina], que separava a modernização e os setores tradicionais da sociedade, embora considerando que os benefícios da primeira, caso houvesse ética, poderiam proporcionar assistência humanitária, remédio e ensino à leseira dos segundos. De passagem, pois o adversário não merecia respeito, tratava-se também de refutar os economistas do regime, segundo os quais era preciso fazer crescer o bolo do setor adiantado, para só depois reparti-lo na área do atraso, tese cínica em que ninguém acreditava.
No plano teórico, a "Crítica" aderia à apropriação não-dogmática do marxismo que estivera em curso na Universidade de São Paulo desde antes de 1964 e que vinha adquirindo relevância política no Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], onde se refugiou durante os anos de chumbo. Política, economia e classes sociais deviam ser analisadas articuladamente, ao contrário do que pensavam os especialistas em cada uma dessas disciplinas. Nas águas da "teoria da dependência", Francisco de Oliveira definia o subdesenvolvimento como uma posição desvantajosa (de ex-colônia) na divisão internacional do trabalho, cimentada por uma articulação interna de interesses e de classes, que ela cimentava por sua vez. Daí a importância atribuída ao entrevero de idéias e ideologias, pois os seus resultados ajudam a desestabilizar, além do iníquo equilíbrio interno, a posição do país no sistema internacional, permitindo lutar por outra melhor. Vem daí também a naturalidade pouco usual entre nós com que o autor critica os seus melhores aliados, de Celso Furtado a Maria da Conceição Tavares, José Serra e Fernando Henrique Cardoso, num belo exemplo de discussão comandada por objetivos que vão além da pessoa. Inesperadamente, o valor da luta de classes é dessa mesma ordem. Francisco de Oliveira não é bolchevique, e a sua idéia de enfrentamento entre as classes é menos ligada ao assalto operário ao poder que ao auto-esclarecimento da sociedade nacional, a qual através dele supera os preconceitos e toma conhecimento de sua anatomia e possibilidades reais, podendo então dispor de si.
Nada mais distante do autor que os sonhos de Brasil-potência e que o desejo de passar a perna nos países vizinhos. Contudo é possível que, em versão sublimada, o seu recorte permaneça tributário do aspecto competitivo dos esforços desenvolvimentistas. Por outro lado, como não seria assim? Num sistema mundial de reprodução das desigualdades, como não disputar uma posição melhor, mais próxima dos vencedores e menos truncada? Como escapar à posição prejudicada sem tomar assento entre os que prejudicam? A reflexão sobre a impossibilidade de uma competição sem perdedores ou por outra sobre a impossibilidade de um nivelamento por cima -mas que por cima é este?- impele a questionar a ordem que engendra o problema. Aqui, depois de haver ativado a disposição política em âmbito nacional, a reflexão dialética passa a paralisá-la na sua forma corrente, ou melhor, passa a solicitar um tipo de política diversa, meio por inventar, para a qual a questão nacional é relativa. A seu modo, a superconsciência visada nos esforços do autor, para a qual, audazmente, a iniquidade é uma tarefa e uma chance, tem a ver com isso. Assim também as suas reflexões sobre a desmercantilização, desenvolvidas no ensaio sobre o "antivalor" (Francisco de Oliveira, "Os Direitos do Antivalor", Petrópolis, Vozes, 1998).
Um dos eixos do "Ornitorrinco" é a oposição entre Darwin e Marx, entre a seleção natural, pelo jogo imediatista dos interesses, e a solução consciente dos problemas nacionais e da humanidade. Ora, na esteira do próprio Marx, os argumentos de Francisco de Oliveira estão sempre mostrando que nada ocorre sem a intervenção da consciência; porém... Presente em tudo, mas enfeitiçada pelo interesse econômico, esta funciona naturalmente e sustenta o descalabro a que ela poderia se contrapor, caso crescesse e mutasse.


Roberto Schwarz é professor aposentado de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Ao Vencedor as Batatas"e "Um Mestre na Periferia do Capitalismo" (ambos pela editora 34).


Texto Anterior: saiba +
Próximo Texto: saiba +
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.