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Ponto de fuga
O malandro na multidão
Jorge Coli
especial para a Folha
Manuel de Araújo Porto-Alegre foi personagem central dentro na cultura brasileira do século 19. Pintor, escultor, arquiteto, poeta, teatrólogo, historiador, jornalista, professor na Academia Imperial de Belas-Artes,
traçou um projeto bem desenhado para a cultura brasileira e marcou seu tempo. Orientou, influenciou, polemizou. Falta ser, ainda, plenamente estudado, apesar de
um interesse crescente que vem despertando nos meios
acadêmicos. A exposição há pouco encerrada na Faap
(SP), com o título de "A Comédia Urbana - de Daumier
a Porto-Alegre", trouxe novas luzes a seu respeito. Fugiu de soluções sumárias e superficiais para enfrentar,
bem armada, uma questão difícil.
O ponto de partida é "A Lanterna Mágica", revista que
Porto-Alegre dirigiu em 1844/45, e teria sido a primeira,
no Brasil, a conjugar texto e caricaturas. Ora, essas imagens se inspiram na série de Robert Macaire (personagem de teatro que encarnava um bandido oportunista),
publicada por Daumier, em Paris, na revista "Le Charivari". A relação é desequilibrada: modesta, pela quantidade e pela qualidade, no caso brasileiro; rica, complexa, no caso francês, que encerra um episódio maior na
história das artes gráficas. O ponto central de Heliana
Angotti Salgueiro, a curadora, foi reconstituir, por documentos diversos, o clima das ruas parisienses, repletas de gente. Ela traçou, com firmeza discreta, certas ramificações dessa cultura urbana que atingiram o Brasil.
Cantoria - A mostra "A Comédia Urbana", na Faap,
já se encerrou, mas resta o catálogo. Ele dá a medida do
que deve ser uma exposição de arte voltada para o passado: reunião de obras e documentos capazes de fazer
avançar o estudo sobre uma questão. O catálogo, neste
caso, torna-se o instrumento reflexivo que perdura.
Nesse diálogo travado entre Daumier e Porto-Alegre,
em verdade ampliado por uma documentação muito
mais vasta, as comparações se estabelecem e as análises
se aprofundam.
O interesse foi tanto que atingiu a música: partituras,
publicadas n'"A Lanterna Mágica", que traziam lundus
deliciosos e paródias desopilantes, foram estudadas
num excelente ensaio.
Melhor ainda, foram gravadas num CD que acompanha o catálogo. Algumas letras dessas músicas são escritas num italiano macarrônico que lembra o de Juó Bananere: assim, esta lista irresistível de animais prodigiosos: "Borbolete, gafanhote,/ Crocodille, ximia informe/
Pipistrelli, vespe note. Una pulga, fato enorme...". E
também um canário "qui toca bene il trombone,/ e parla vinte sei lingue". Há um inenarrável "Recitativo e
Aria di Bravura", com citações de árias célebres, destinado a uma cantora de ópera fictícia, gordona e empetecada de plumas, segundo a ilustração de "A Lanterna
Mágica".
Garance - Os vínculos entre a rua como espetáculo, o
espetáculo de rua e o teatro, nesse século 19 parisiense,
foram retomados, com uma poesia incomparável, numa obra-prima do cinema, "O Boulevard do Crime", de
Marcel Carné (em DVD pela Versátil). Data de 1945 e
tem Jean-Louis Barrault e Arletty como atores principais. Inspira-se diretamente das ilustrações dos tempos
de Daumier. Foi projetado durante a mostra da Faap,
com a qual entrava em plena sintonia.
Santíssima Trindade - O gênio de Daumier é imenso, e
o mais moderno do século 19. Modernidade que não
vem pela busca de experiências formais, já que seu traço
nunca procurou nada: vigoroso e justo, Daumier sempre acertava, de maneira fulminante. Ela surge antes
porque sua arte explora um gênero de invenção recente,
o jornalismo. Fazia caricaturas em argila dos personagens que lhe serviriam de modelo.
Foi um prodigioso pintor também, quase sempre em
pequenos formatos. Sua obra possui um formidável
sentido plástico, que transita da escultura para a pintura
e o desenho. Para além do grotesco e da piada imediata,
suas litos são as únicas a sustentarem comparação com
as gravuras de Rembrandt e de Goya.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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