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Política
Europa com medo do povo
O FILÓSOFO JÜRGEN HABERMAS DIZ QUE A ÚNICA SOLUÇÃO PARA O CONTINENTE É O RECONHECIMENTO DAS DIFERENÇAS NACIONAIS
JÜRGEN HABERMAS
Os agricultores se irritam com os preços em queda no
mercado mundial
e com as regras
impostas por Bruxelas [onde fica a sede da União Européia].
Os que estão "por baixo" se
irritam com a distância crescente entre ricos e pobres num
país onde vizinhos viviam em
pé de igualdade. Os cidadãos
desprezam seus próprios políticos, que prometem muito,
mas perderam toda perspectiva e capacidade de ação.
Para completar, um referendo sobre um tratado que, de tão
complicado, não há quem o entenda. A entrada da Irlanda na
UE foi proveitosa para o país.
Sendo assim, por que mudar
as regras? Afinal de contas, a
transferência de poderes para
as instituições européias não
tiraria força do voto democrático, que só se faz ouvir no âmbito dos Estados nacionais?
Os cidadãos farejam o paternalismo que se insinua e que
quer apenas que ratifiquem decisões em que não tiveram voz.
Agora o governo decidiu só
repetir o referendo quando tiver certeza da aclamação. Os irlandeses -esse pequeno povo
de resistentes- foram os únicos em toda a vasta Europa que
puderam dar sua opinião.
De um golpe, conseguiram
deter a marcha da locomotiva
inteira -e todas as rodas pararam. Não querem ser conduzidos às urnas como gado eleitoral. Com exceção de três parlamentares contrários ao tratado, toda a classe política se
opunha ao "não".
Assim fazendo, de certo modo puseram todo o sistema político em jogo. Donde a enorme
tentação de passar um memorando a toda política assim
concebida e praticada.
Sobre os motivos do "não" irlandês só é possível especular.
As reações "oficiais" foram
unívocas. Os governos, acuados, não querem parecer desnorteados com o resultado,
tentam se comportar "profissionalmente" para procurar
uma solução "técnica" -no frigir dos ovos, uma repetição do
plebiscito irlandês, isto é, uma
demonstração de cinismo por
trás do respeito puramente
verbal à decisão dos votantes,
com o que se levaria água para
o moinho de quem já se pergunta se as formas semi-autoritárias das democracias de fachada não seriam mais convenientes.
O Tratado de Lisboa deveria
dar seqüência às reformas que
a "cúpula" de Nice -anterior à
expansão da UE de 15 para 27
membros- esboçara sem conseguir realizar.
Nesse meio tempo, a expansão para o leste, com a conseqüente melhoria dos indicadores mais crassos de bem-estar e
a intensificação dos conflitos
de interesse, tornou necessário
um novo esforço de integração.
Os fóruns europeus não têm
como lidar à moda antiga com
os novos conflitos e tensões.
Diante do fracasso da Constituição Européia, o Tratado de
Lisboa não foi mais do que uma
solução de emergência, burocraticamente concebida, a ser
imposta sem mais aquela às populações européias.
Com esse ato de força, os governos queriam mostrar, sem o
menor constrangimento, que
são eles a decidir pelo destino
da Europa -exceção feita ao
referendo previsto na Constituição irlandesa.
O próprio Tratado de Lisboa
fora, no melhor dos casos, uma
resposta lenta ao choque anterior, quando o processo de ratificação da Constituição emperrara na França e nos Países
Baixos, antes mesmo de chegar
a seu fracasso anunciado no
Reino Unido.
Desta vez, o constrangimento é ainda maior. Terá chegado
a hora de indagar se a unificação européia, caso queira seguir adiante, terá que optar por
caminhos políticos mais próximos dos cidadãos? Até Nice, esse processo foi conduzido como projeto de uma elite liberal.
Desde então, os sucessos
econômicos foram percebidos
mais e mais como parte de um
jogo de soma zero, à medida
que surgiam massas de desfavorecidos em todas as sociedades européias.
Temores sociais bem fundamentados e reflexos de medo
irrefletido podem explicar a
instabilidade da opinião pública. Mas não há como não levar
a sério os problemas em aberto, sobre os quais os partidos
políticos podem agir, contanto
que se esforcem por oferecer
perspectivas convincentes.
Os referendos fracassados
são sinal de que, graças a seus
próprios êxitos, a unificação
européia chegou a limites que
só serão transpostos quando as
elites pró-européias deixarem
de contornar o princípio representativo e perderem seu temor ao povo.
Chegou a um nível crítico o
divórcio entre as instâncias de
decisão política estabelecidas
por Bruxelas e Estrasburgo, de
um lado, e os canais de participação democrática remanescentes nos Estados nacionais,
de outro.
Isso é ainda mais grave na
medida em que as competências do Estado europeu e dos
Estados nacionais foram muito
desigualmente divididas.
Os efeitos sociopolíticos e
culturais das instituições de
mercado instauradas em toda a
Europa explodem no âmbito
dos Estados nacionais, aos
quais não restou nenhuma influência sobre a origem desses
"custos externos".
Nessas condições, a política
só pode vir a recobrar competências antigas se conduzida
em nível europeu; só assim a visão empalidecida de uma "Europa social" poderia voltar a
uma arena política decisiva -e
só assim os partidos social-democratas, hoje desfigurados,
poderiam formular visões dignas de crédito.
A convivência no espaço europeu não deveria ser concebida sobre bases que excluíssem,
de saída e por princípio, qualquer alternativa ao liberalismo
de mercado. Mesmo porque as
questões da harmonização cuidadosa das políticas fiscais e
econômicas e da padronização
paulatina dos sistemas de seguridade social no interior da UE
tocam no conflito em torno da
"expansão" ou do "aprofundamento" que há anos vem assolando a UE.
O silêncio dos governos sobre o futuro da Europa encobre
o conflito de objetivos que vem
roubando perspectiva e energia à União.
A Europa quer ser um ator
capaz de decisão no terreno interno e externo ou nos daremos por satisfeitos com o apelo
civilizatório que o projeto de
expansão crescente exerce sobre os países ingressantes?
O preço do projeto de expansão difusa se faz notar na falta
de força política diante de uma
sociedade mundial em conflito
desde 2001.
Basta pensar na triste imagem dos nossos "príncipes"
Brown, Sarkozy e Merkel [líderes, respectivamente, de Reino
Unido, França e Alemanha],
que fazem questão de entrar
sozinhos na antecâmara de
Bush: é a Europa despedindo-se do palco mundial.
Os problemas da mudança
climática, da desigualdade de
renda, de uma ordem econômica estável, dos direitos humanos, das fontes não-renováveis
de energia -todos esses problemas dizem respeito igualmente a todos nós.
E, no mesmo momento em
que todos dependem mais estreitamente de todos, assistimos à expansão dos arsenais
atômicos e bioquímicos e à escalada dos potenciais de violência. Uma Europa capaz de
ação não deveria, em seu própria interesse, fazer valer seu
peso no esforço de pacificação
humanitária e política da comunidade internacional?
Mas o fato é que a UE não
tem peso político à altura de
seu peso econômico -e não o
terá enquanto os governos discordarem sobre os objetivos da
unificação européia.
Nesse ponto, é importante
ter clareza quanto às responsabilidades: são os governos que
não sabem o que fazer que
eternizam o status quo melancólico. É natural que o conflito
de objetivos ganhe virulência
por obra de diferenças profundas, com raízes históricas -o
que, de resto, não constitui
fundamento para a crítica a este ou aquele país.
Mas, após o alerta irlandês,
temos o direito de esperar duas
coisas de nossos governos: devem reconhecer que gastaram
todo seu latim e devem parar
de escamotear seu dissenso.
Afinal de contas, não têm escolha senão deixar que a própria
população decida.
Isso significa que os partidos
políticos terão que arregaçar as
mangas para que a questão da
Europa volte a ser o tema crucial que de fato é: uma Europa
cindida por disputas nacionais
será capaz de se tornar um sujeito capaz de ação política interior e exterior?
Fala-se agora em salvar o
Tratado de Lisboa oferecendo-se aos irlandeses a possibilidade de uma saída parcial da UE.
A proposta ao menos leva a
sério a decisão dos eleitores irlandeses, que podem até se surpreender, uma vez que não
queriam chegar a tanto.
Mas a mera ponderação dessa possibilidade já é um avanço
na direção correta: um tratado
de cooperação pelo qual os países-membros pudessem colaborar em algumas instâncias, e
não em outras, talvez constituísse uma saída para o embaraço geral que se instalou.
A Europa foi longe com seu
comboio em que o vagão mais
lento determina o ritmo dos
outros. Mas agora é hora de
mudar. A própria proposta de
eleições diretas para a presidência da UE vai bem além do
hesitante Tratado de Lisboa.
O Conselho Europeu deveria
saltar além da própria sombra
e propor que as próximas eleições européias fossem também
um referendo formulado em
termos claros. Com isso, os cidadãos poderiam se pronunciar em todos os países da UE,
no mesmo dia e sobre a mesma
pauta.
O erro mais óbvio de todos os
referendos até agora consistiu
em conduzi-los em âmbito meramente nacional, e não pan-europeu.
Com muito empenho e alguma sorte, poderia sair daí uma
união dos dois tempos, à medida que os países em que o referendo for vitorioso desenvolvam uma cooperação mais estreita no domínio das políticas
econômica, exterior, de segurança e de seguridade social.
Postos diante de uma encruzilhada, também os países ingressantes do sul e do leste teriam que se perguntar a sério
sobre qual o melhor caminho
para seus interesses.
Ao mesmo tempo, um núcleo
europeu capaz de ação e êxito
provavelmente voltaria a atrair
a atenção de países membros
hoje céticos. Finalmente, é
possível que, por complicada
que seja, a diferenciação interna torne mais fácil a difícil tarefa da expansão da União Européia.
JÜRGEN HABERMAS (1929) é filósofo alemão,
autor de "Consciência Moral e Agir Comunicativo" (Tempo Brasileiro).
Este texto saiu originalmente no jornal "Süddeutsche Zeitung".
Tradução de Samuel Titan Jr.
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