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Juan José Saer
O escritor argentino analisa as invenções formais e o alcance universal de um conto de Guimarães Rosa
Meus tios narradores
Embora tenha sido publicado pela primeira vez em 1961, em revista
["Senhor"], "Meu Tio o Iauaretê" [reunido no volume "Estas Estórias", em
1969], de Guimarães Rosa, foi escrito antes de "Grande Sertão: Veredas", que
apareceu em 1956. Haroldo de Campos,
já em 1967, opinava que "Meu Tio..."
constitui o ponto alto dos experimentos
de Guimarães com a prosa narrativa.
Evocando Ovídio e citando Ezra
Pound, Haroldo de Campos afirma que
o texto incorpora "o momento mágico
da metamorfose". O tradutor francês do
livro, Jacques Thiérot, cita-o no prefácio
de sua elaborada versão:
"Já não é a história que cede o primeiro
plano à palavra, e sim a palavra que, impondo-se no primeiro plano, configura o
personagem e a ação para reconstituir a
história. O conto é um longo monólogo-diálogo (o diálogo está subentendido,
pois só o protagonista pergunta e responde) de um caçador de onças, perdido
na solidão das Gerais, que recebe em seu
rancho a visita inesperada de um viajante cujos companheiros se perderam".
Vale acrescentar que, entre as múltiplas ambiguidades desse texto singular, a
presença do visitante silencioso não é a
menor: se o leitor de início acredita que o
protagonista realmente se perdeu no sertão, aos poucos começa a se perguntar se
não teria chegado ali com o objetivo de
matar o monstro em seu esconderijo, como Teseu o Minotauro no centro do labirinto. O caçador, um caboclo pago por
um fazendeiro para matar onças e que a
princípio cumpre sua tarefa sem nenhum problema, vai entrando imperceptivelmente na aura de suas vítimas,
que exercem sobre ele um crescente fascínio, a tal ponto que não apenas se arrepende dos seus crimes e deixa de matá-las, mas começa a conviver com elas e
acredita que o adotaram: "Mas eu sou
onça. Jaguaretê tio meu, irmão de minha
mãe, tutira".
Esta palavra, em tupi, significa tio materno, de modo que o caçador, para definir seu parentesco com as onças, reivindica uma filiação matrilinear, comum a muitas culturas, em que os irmãos da
mãe substituem o pai nas várias etapas
da educação das crianças, aprendizagem, iniciação, integração ao grupo etc.
Essa filiação matrilinear com a onça evocada pelo caçador implica, sem dúvida,
uma volta às suas origens, não num retrocesso biológico, mas numa ordem
cultural, porque seu pai biológico é justamente um branco, e a onça pertence ao
âmbito cultural de sua mãe índia.
Alcance universal
Apesar do minucioso trabalho do tradutor, boa parte da
riqueza linguística de "Meu Tio o Iauaretê", como as múltiplas ressonâncias que
certos vocábulos devem despertar no leitor brasileiro, escapa ao leitor estrangeiro, e muitas de suas conotações devem
ser restituídas ou explicadas em notas ao
final do livro, algumas redigidas pelo
próprio Guimarães, que constituem verdadeiros suplementos poéticos ao texto,
como a explicação do termo "vereda"
que faz por carta ao seu tradutor italiano
[Edoardo Bizzarri". Mas a situação narrativa e suas implicações culturais permanecem intactas e têm um alcance universal.
Quanto à narração propriamente dita,
as modulações rítmicas do monólogo, o
esclarecimento progressivo da trama, a
alternância da narrativa com a constante
irrupção de sobressaltos afetivos e emotivos por meio de interjeições, onomatopéias e de uma espécie de monólogo interior que por momentos se manifesta
em voz alta e se transforma em solilóquio, bem como as repetições e o sutil
entrelaçamento temático, tudo isso dá ao
texto uma evidência artística imediata.
Talvez os momentos poéticos mais intensos sejam aqueles em que o caçador
evoca as onças: uma inusitada riqueza
sensorial, mais do que pelas evidentes associações eróticas, pela variedade de sensações táteis, olfativas, visuais, auditivas
e até gustativas, uma diversidade de texturas e de cores na descrição da pele da
onça, uma prosa fluida, macia e ao mesmo tempo elástica, para expressar seus
movimentos, lembram por momentos a
opulência descritiva dos poetas decadentistas ou o bestiário onírico e a selva imaginária do Aduaneiro Rousseau, criando
um contraste incomum com a paisagem
e os personagens tão imediatamente realistas. Por último, o tema da metamorfose é tratado com a ambiguidade exata
que, desde Kafka, entre outros, o gênero
fantástico recomenda, deixando pairar
uma indefinição de sentido entre os fatos
efetivos e sua possível interpretação metafórica. Assim, a transformação do caçador é sem dúvida psicológica e cultural, mas não necessariamente física, assim como ocorre também em outros
contos fantásticos latino-americanos do
mesmo período ("Axolotle", de Julio
Cortázar, por exemplo).
A fatalidade biológica
A especificidade brasileira não anula, mas antes
enriquece, o alcance universal do texto,
pois expressa com o sabor único de um
idioma, uma época e um lugar um conflito que é constante em todo tipo de sociedade. Seu achado mais singular é essa
filiação matrilinear reivindicada pelo caçador, podendo-se detectar na substituição do pai biológico por um ou vários
tios maternos uma tentativa de superar a
fatalidade biológica por meio de um parentesco que constitui uma autêntica
instituição social e cultural.
Mas seria um equívoco interpretar essa
filiação como uma suposta regressão indigenista ou naturista, uma vez que ela
expressa, através do narrador -que, vale lembrar, é um matador contratado para exterminar onças-, uma tentativa de
reconciliação, em que homens, animais e
paisagem são englobados numa síntese
mais rica que o conflito que os opõe.
Ao mesmo tempo em que o caçador se
animaliza, as onças vão se tornando mais
humanas, com traços individuais, não
apenas físicos, mas também psicológicos, e até nomes próprios. Apesar de sua
evidente ferocidade, o caçador também
desperta nossa compaixão, pois sua
mestiçagem representa para ele a mesma
carga que para o minotauro significa a
conformação monstruosa resultante de
uma cópula "contra natura". Mas vale a
pena imaginar o que teria acontecido se,
em determinado momento, o monstro
de Creta, repudiando o coito bestial, tivesse reconhecido sua estirpe nos jovens
que eram enviados de Atenas para o sacrifício, em vez de devorá-los.
A filiação de Dostoiévski
Os momentos mais fecundos da cultura são
aqueles em que, recusando a fatalidade
biológica ou uma tradição muito rígida
que às vezes se pretende tão inexorável
quanto essa fatalidade, certos grupos ou
indivíduos reivindicam uma nova filiação. Para não provocar a indignação de
nenhum etnólogo profissional com essas
extrapolações, nos limitaremos à narrativa, citando, por exemplo, o caso de
Dostoiévski. Como se sabe, seu pai, que
morreu assassinado, foi para ele uma
fonte inesgotável de problemas morais,
psicológicos e físicos. Na condição de escritor, ele opõe a essa fatalidade familiar
uma filiação própria, pessoal, uma filiação cultural semelhante à do caçador de
Guimarães Rosa. Seus tios narradores se
chamavam Gogol, Cervantes, Shakespeare, Homero. Ao transportá-lo para
um mundo maior e mais flexível que o
da sua fatalidade biológica e familiar, eles
não só o salvaram, mas o tornaram um
dos seus, apto a transmitir não apenas
uma visão própria, mas também, como
eles, uma tradição renovada. Ele mesmo
se transformou, por sua vez, na divergência possível, capaz de arrancar o
mundo do seu estúpido determinismo.
Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Companhia das Letras).
Tradução de Sergio Molina.
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