São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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Ponto de Fuga

Uma questão delicada

Jorge Coli
especial para a Folha

O filme "Cidade de Deus" foi um sucesso anunciado. Correspondendo a essa expectativa, o público acorreu e uma parte da crítica se entusiasmou. Uma outra parte alinhou, entre aspectos negativos, o embelezamento da violência e da miséria. Assinalou o caráter maniqueísta dos personagens, divididos em bons e maus traficantes, em bandidos simpáticos e antipáticos. Reparou que essa marginalidade se fecha sobre si, exterior e exótica à sociedade que a engendrou, num lugar que autoriza apenas a saída individual para outra classe, para outro território.
A ficção, no entanto, mesmo quando se quer realista, tem seus direitos, e esses senões poderiam ser salvos pela qualidade propriamente cinematográfica. Ninguém acredita que os miseráveis, descritos por Victor Hugo, fossem mesmo daquele jeito. Mas ninguém esquece de Jean Valjean, Cosette ou Javert, cuja verdade literária marca a memória de qualquer leitor, inquietante e perturbadora.
"Cidade de Deus" foi bem filmado, de maneira hábil e dominada. O elenco de amadores foi dirigido de maneira convincente. Contudo o filme é apenas uma miragem. Associa comoção sentimental, violência e desfavorecidos: bons trunfos diante da consciência culpada do público frequentador das salas. Amarra tudo isso com uma câmera atilada. Oferece cenas brutais e diálogos engraçados, falas um pouco estranhas desse mundo distante. São estratagemas. Funcionam para alcançar o sucesso, mas a eles o essencial é sacrificado. É como uma sedutora embalagem vazia.

Fake - Tarantino é mais divertido do que Wim Wenders. Como "Cidade de Deus" é um sub-Tarantino, e "Central do Brasil", um sub-Wim Wenders, "Cidade de Deus" é mais divertido do que "Central do Brasil". Ambos possuem, porém, um mesmo caráter enganoso.
Há a maneira boa e a maneira ruim de imitar. A boa é quando se tenta entender as razões internas de um criador e percorrê-las por dentro. Aí, o artista que imita chegará a produzir alguma coisa nova, fruto de uma simbiose de suas próprias forças com as do imitado. A ruim é quando se arremedam os aspectos exteriores, as receitas, os lugares-comuns. Então, aquilo que era resultado de uma coerência imanente ao ato de criar se transforma em ornamento ilusório. Em mãos espertas, é mesmo muito capaz de iludir.
Um filme pode ter sinais exteriores de excelência, que o levam, por ótima carreira, aos aplausos do público e de crítica, atingindo prêmios internacionais. Eles são insuficientes, no entanto, para torná-lo, de fato, um filme. Pode estar cheio de qualidades, mas elas não o respeitam, pois se reduzem a intenções e interesses que lhe são exteriores. Como nada é melhor para entender uma obra do que outra, basta, diante de "Cidade de Deus", lembrar de "O Invasor". Este último, muito menos acabado e polido, consegue uma força efetiva de convicção, ao enfocar o tema da violência. Não tenta imitar coisa nenhuma, não busca satisfazer sensibilidades assustadas nem consciências culpadas. Conta uma história, apenas; história abominável, em que o horror circula nas relações de todos os personagens.

Alvo - As táticas para que um filme obtenha prêmios e sucesso nunca impediram o vigor da criação. Em si mesmas, não são um mal. Fellini dá o exemplo. Recrutou, muito cedo, atores de Hollywood, o que facilitava a penetração de suas obras no mercado americano. "La Strada" ("A Estrada da Vida", 1954), estrelado por Anthony Quinn, terminou por obter o Oscar de melhor filme estrangeiro. Fellini foi um grande manager de si próprio.

Modo - Para Hitchcock, prever a reação do público estimulava sua invenção. Significava também preocupar-se com a bilheteria. Nunca lhe ocorreu ser um gênio incompreendido. Detestava "Sob o Signo de Capricórnio", que rodou em 1949, sobretudo porque foi um desastre financeiro. Durante a filmagem, Ingrid Bergman, meio rebelde à direção, termina por ceder: "Está bem, Hitch, faço como você quiser". A resposta, admirável, foi: "Não como eu quiser, Ingrid, mas como deve ser". Hitchcock submetia-se ao rigor da obra que criava.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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