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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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Estudo discute a função exercida pela moda no implemento dos padrões civilizatórios europeus no Rio de Janeiro do século 19

As revoluções da máquina de costura

Reprodução
O escritor Machado de Assis e sua mulher, Carolina Augusta Xavier de Novais, no Rio de Janeiro, no final do século 19


Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha

O cenário é a cidade do Rio de Janeiro no período do século 19. O assunto: a moda. De homens e mulheres, se bem que na moda prevaleça a mulher, por meio de um processo chamado "ocidentalização" dos usos e costumes, trazido pela vinda da corte de d. João 6º. Antes do rei luso aportar por aqui, era o Rio de Janeiro uma cidade colonial -pasmem os leitores- de hábitos árabes, com as mulheres fazendo refeição sentadas no chão sobre esteiras ao jeito oriental. A tese bem feita de Maria do Carmo Teixeira Rainho ("A Cidade e a Moda", Jorge Zahar Editor) é que a moda francesa e inglesa foi um instrumento de implantação da civilidade ocidental na elite da sociedade carioca, na qual a mulher, pela primeira vez no salão, depois da reclusão doméstica da senhora de engenho, começa a aparecer como subjetividade individualizada, embora existindo por tabela do pai, do marido e do amante. "A vida na Corte" -escreve a autora- "ao mesmo tempo em que exigia a mulher de salão, a mulher vestida com propriedade e elegância e que, por procuração, refletia a riqueza dos homens, dava a ela meios de realizar algumas escolhas. Afinal, a vida no Rio de Janeiro começava a permitir que a mulher da "boa sociedade" tivesse a possibilidade de escolher o que vestir -de acordo com seus interesses, sem deixar de lado a adequação dos trajes exigida pela vida social". O século 19, por toda parte, significou o século da moda. A máquina de costura é uma invenção tecnológica que surgiu depois do carvão mineral movido a vapor na indústria têxtil. É a época em que, no Brasil, o filósofo sergipano Tobias Barreto, que nunca chegou a colocar os pés na capital do país, dizia não haver amor antes de haver vestidos. A verdade é que ainda hoje as pessoas em geral se apaixonam primeiramente estando sob o olhar da vestimenta. A gente se apaixona vestido, pelo menos depois de Adão e Eva. Eis o que dizia um periódico carioca: "A moda se inventou não para satisfazer um capricho pueril, mas para mascarar o aborrecimento que nos deve produzir a mesma pessoa vista constantemente debaixo dos mesmos trajes e atavios".

Reflexão sociológica
A roupa tem sido (Noel Rosa perguntava "com que roupa?") objeto de reflexão sociológica de autores como Spencer, Veblen, Simmel e -na prata da casa- Gilberto Freyre e Gilda de Mello e Souza, a quem a autora presta as merecidas homenagens pelo livro que nasceu clássico: "O Espírito das Roupas" (Cia. das Letras).
A França e a Inglaterra ditando o bom tom da moeda, num período em que a Inglaterra, rainha dos mares e da rapina imperialista, substitui a Portugal com os juros já vencidos. O Rio de Janeiro tropical, cheio de sol e de calor, assiste à voga do pudoroso espartilho escondendo o corpo da mulher, assim como os homens irão se vestir de sobrecasaca e cartola de pelo, como foi o caso, já entrando o século 20, do médico Oswaldo Cruz e outros cientistas de Manguinhos, de sorte que a mimética civilidade indumentária deve com certeza ter trazido incômodos e aborrecimentos a homens e mulheres nos trópicos úmidos.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "Glauber Pátria Rocha Livre" (ed. Senac), entre outros.


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