São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004 |
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+ brasil 505 d.C. Luiz Costa Lima O sagrado como deserto
"Mameloshn - Memória em Carne Viva" põe em questão o estatuto da ficção e da realidade ao tratar do Holocausto
É espantoso que, em tempos dessacralizados como os nossos, se crie uma nova prática de proibição da figura. A proibição, conhecida por culturas antigas como a hebraica e a islâmica, tinha como razão o sagrado. Interditava-se a representação do sagrado ou de toda figura que se lhe assemelhasse. Hoje, não é nenhum sagrado que formula o princípio interditor; nem muito menos há algum preceito que o exprima literalmente. A interdição (prática) de representação ficcional do Holocausto não aponta senão para o lugar vazio hoje ocupado pelo sagrado. O sagrado é a ausência que mal conseguimos perceber ou entender. Por isso mesmo seu desrespeito será exercitado em nome de um "sagrado" que se respeita sem que se lhe tenha como tal: a caixa da bilheteria, a conta bancária, as cotações da Bolsa. Fora Mamon, só atinamos com algum deus pela imagem de uma "terra devastada"; o divino é algo que só encontramos nas cinzas e na destruição. Tal sagrado negativo é a correspondência, no plano do imaginário, do que o historiador Dan Diner, a propósito do fracasso das autoridades judaicas do gueto de Varsóvia em dar alguma racionalidade à escolha das vítimas dos nazistas, chamou de "contra-racionalidade"; era ela que presidia o Holocausto. Como a contra-racionalidade aí apenas alcançou sua expressão suprema, não estranha que outras experiências, sucedidas noutros tempos e noutros continentes, sejam comparadas ao Holocausto e passem a ser designadas, em conjunto, pelo nome "literatura de testemunho". O termo "literatura" não será talvez adequado, e "testemunho" não deverá ser confundido com o documentalismo chão, decorrente da mera incompetência de romancistas, dramaturgos e cineastas, muito comum na América Latina. Traço positivo A interdição de ficcionalizar o Holocausto tem como ponto de partida o reconhecimento de sermos capazes de agir, sem a desculpa de alguma cólera eventual, por um cálculo que nenhuma razão respalda. Havendo sido antes capazes de conceber deuses e inclusive suas figuras, como Heródoto dizia de Homero, hoje antes reconhecemos nosso limite em só conceber o sagrado-como-deserto. Ainda que a autora de "Mameloshn -Memória em Carne Viva" não o saiba, é a força desse interdito que paira sobre seu livro e o distingue de uma massa amorfa. Essa força tem o traço positivo de evitar a obscenidade de cenas de impacto, facilmente transformáveis em best-seller ou em peça de propaganda de um país. Traz, no entanto, o embaraço de, sob o temor de ficcionalizá-lo, não haver sistematicamente convertido em obra da linguagem o rico material de seus dois protagonistas: o pai e a mãe da narradora. Cada um tem um potencial muito raro, é certo que efetivado em alguns momentos excelentes. A mãe, em sua mistura de feminilidade não desfeita pela dor das perdas, pela loucura causada pelo terror, pela miséria vivida em uma enxerga em Paris e o choque de sua chegada ao calor e à diferença de Madureira; o pai, estuante de lascívia e esperteza, mascateando a sobrevivência entre as putas do Mangue, abandonando depois mãe e filha, de que leva as últimas reservas de dinheiro, até, de volta à Europa, passar a perna nos alemães, de quem ganha dinheiro como contrabandista, e nos soviéticos, de que ocupa, em Varsóvia, apartamento que fora de sua polícia secreta . É o mais acabado exemplo do embusteiro simpático. E como esquecer a própria descoberta dos trópicos? Ao passo que a mãe não aprendera a cozinhar porque escapara da morte servindo a cantina dos oficiais alemães, é a maleabilidade do pai que ensina à filha os sabores inéditos que aprende na terra nova, quente e de gente morena. Se a autora teve a sensibilidade de não os julgar por um prisma rigidamente ético, é de esperar, tendo sido este seu primeiro livro, que saiba lhes conceder outra oportunidade. Enquanto isso, cabe ao leitor distinguir "Mameloshn" dos falsos brilhantes. Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "O Redemunho do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções" (Edusp). Escreve regularmente na seção "Brasil 505 d.C." (depois de Cabral). Texto Anterior: Et + cetera Próximo Texto: Confissões de um pensador Índice |
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