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A BEATITUDE DE ESPINOSA
Marcos André Gleizer
especial para a Folha
A filosofia de Baruch Espinosa (1632-1677) é uma
das mais extraordinárias produções do espírito
humano. Sua obra principal, a "Ética Demonstrada à
Maneira dos Geômetras", ocupa uma posição ímpar na
história da filosofia. Sua forma dedutiva constitui a
exemplificação mais perfeita do ideal de sistematização
do saber, característico da modernidade. Seu conteúdo,
encadeado rigorosamente ao longo das cinco partes
que a compõem, constrói um espaço teórico inovador
que rompe radicalmente com o universo conceitual da
tradição metafísico-moral judaico-cristã. Partindo do
conhecimento de Deus e de sua relação imanente com a
natureza, a "Ética" pretende "conduzir-nos, como que
pela mão, ao conhecimento da alma humana e de sua
beatitude suprema".
Trata-se, ao longo desse percurso, de conquistar o conhecimento verdadeiro de nós mesmos como partes da
natureza, como expressões certas e determinadas do
absoluto, conhecimento do qual nascem os afetos ativos que constituem o núcleo da experiência da beatitude, a saber: o contentamento íntimo e o amor intelectual de Deus. Espinosa reconhece que o caminho proposto é extremamente árduo, pois a ele se refere ao término da "Ética" com a célebre afirmação: "Todas as coisas notáveis são tão difíceis como raras".
Essa dificuldade não deve espantar o leitor. Afinal, o
objetivo proposto vale o esforço. Além disso, há livros
que pretendem auxiliar o iniciante a dar os primeiros
passos nesse árduo caminho. Auxílios são evidentemente bem-vindos, com a condição de que ofereçam
um mapa confiável do caminho a ser trilhado, isto é, um
retrato fiel do pensamento de Espinosa. O que se espera
de uma breve introdução ao pensamento de um autor?
Que seja escrita em linguagem clara e acessível, que
apresente de forma sintética as principais questões e teses por ele defendidas, que evite juízos sumários, precipitados e preconceituosos a respeito da validade das teses apresentadas (afinal, elas estão sendo apresentadas
sem os argumentos que as sustentam) de modo a despertar o interesse do leitor em aprofundar os primeiros
conhecimentos recém-adquiridos. Tomando esses elementos como requisitos mínimos de uma boa introdução, examinemos rapidamente três livros que se encontram em circulação atualmente.
O livro de Paul Strathern dificilmente pode ser considerado uma introdução a Espinosa. Com efeito, o retrato pintado de sua vida e obra contém uma tal quantidade de informações histórica e filosoficamente incorretas
que é preciso considerá-lo antes como uma caricatura
(em perfeita conformidade, aliás, com a caricatura de
Espinosa que serve de frontispício ao livro) do que como um autêntico retrato.
Apesar de alguns lugares-comuns laudatórios ("Espinosa é o filósofo dos filósofos"), o tom adotado pelo livro prefere ridicularizar o
pensamento de Espinosa a compreendê-lo e, sem deter-se na exposição deste pensamento, se apressa em tentar "refutá-lo" a partir de
vagas opiniões acerca da ciência contemporânea e de preconceitos
filosóficos apresentados de forma simplória como verdades evidentes. Passemos, portanto, a algo mais interessante.
O livro de Roger Scruton leva-nos a um outro patamar. Trata-se
de um livro escrito com bastante clareza (apesar de alguns problemas de tradução) e de âmbito bem delimitado. Após uma brevíssima introdução histórica (pouco informativa e pouco precisa), o autor se concentra na apresentação das principais questões que norteiam a construção da "Ética" e das principais teses propostas como
respostas. Essa concentração permite apresentar um retrato mais
amplo e detalhado do projeto global da "Ética" do que o oferecido
pelas duas outras introduções aqui comentadas. Além disso, Scruton não se contenta simplesmente em apresentar as teses, mas procura oferecer também um esboço de interpretação. Embora as interpretações sugeridas suscitem vários problemas (aos olhos do especialista), elas não deixam de ser estimulantes e de lançar com proveito o leitor na dinâmica reflexiva própria da filosofia.
Por fim, o livro de André Scala oferece a mais substancial e abrangente das três introduções, sendo útil não apenas ao leigo, mas também aos que já possuem algum conhecimento da obra de Espinosa.
Partindo de uma breve reflexão acerca das diversas relações entre o
filósofo e o não-filósofo, ele organiza os quatro capítulos de seu livro em torno dessas relações, mostrando engenhosamente como
cada uma delas está envolvida em uma das principais obras de Espinosa. Assim, o primeiro capítulo oferece uma análise interessante
do preâmbulo do "Tratado da Emenda do Intelecto", no qual o jovem Espinosa (ainda não-filósofo) descreve o movimento existencial e reflexivo que o conduz à filosofia. O segundo capítulo aborda
alguns aspectos da complexa relação entre Espinosa e Descartes,
suscitados pela exposição dos "Princípios da Filosofia de Descartes", que Espinosa -já então filósofo maduro- ditou a um jovem
estudante que desejava se introduzir à filosofia. O terceiro, ao apresentar o "Tratado Teológico-Político", examina a relação combativa do filósofo com os não-filósofos (teólogos, políticos) que encarnam os obstáculos ao exercício da filosofia, isto é, à liberdade de
pensamento. O último capítulo, dedicado à "Ética", mostra que
uma certa relação de composição entre o filósofo e os não-filósofos
é condição para que ele possa formar as idéias adequadas que o
conduzem da perspectiva da parte à perspectiva do todo. Infelizmente, em vez de expor com clareza as grandes linhas dessa perspectiva, isto é, da ontologia de Espinosa, o autor se debruça aí sobre
considerações técnicas acerca do método, das tentativas de formalização empreendidas por Espinosa, das dificuldades da prova da
existência da substância etc., levantando problemas que, ultrapassando em muito o nível da mera introdução, confundem desnecessariamente, com esse tropeço expositivo, o iniciante que ensaia seus
primeiros passos em direção à beatitude espinosista.
Marcos André Gleizer é professor de filosofia da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e autor de "Verdade e Certeza em Espinosa" (L&PM).
OS LIVROS:
Espinosa em 90 Minutos (coleção "Filósofos em 90 Minutos"), de Paul Strathern.
Trad. Marcus Penchel. Jorge Zahar.68 págs., R$ 14,00
Espinosa (coleção "Grandes Filósofos"), de Roger Scruton. Trad. Angélika Elisabeth
Könke. Editora Unesp. 56 págs., R$ 10,00
Espinosa (coleção "Figuras do Saber"), de André Scala. Trad. Tessa Moura Lacerda.
Editora Estação Liberdade. 136 págs., R$ 22,00
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