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Ponto de fuga
O anjo violento
Jorge Coli
especial para a Folha
Os americanos já estão vendo "Kill Bill 2", que foi
apresentado agora no Festival de Cannes, "hors-concours". O filme deve chegar ao Brasil no mês de outubro. Aqui, está ainda em cartaz a primeira parte, "Kill
Bill 1". A frustração é grande quando chega ao fim e
anuncia a interrupção. Não por causa da astúcia própria aos seriados, do gênero "conseguirão nossos heróis
escapar?", mas porque o prazer é intenso e fica ali sem
continuidade.
Nenhum filme de Tarantino atingiu, até agora, um
grau tão alto de leveza divertida. "Cães de Aluguel" é
agônico e doloroso, repleto de angústia culpada. De
"Jackie Brown" emana a melancolia do envelhecimento
em modo sussurrado e lírico. O humor cínico de "Pulp
Fiction" explora a gratuidade da violência, a banalização da morte e se carrega de mal-estar trazido pelo aniquilamento de qualquer valor ético. "Kill Bill" investe
tanto na hipérbole absurda, nos exageros irônicos que
os massacres perdem algo de seu horror em benefício
do espanto e do maravilhamento.
Tarantino, do western espaguete ao kung fu, ressuscita gêneros do passado que desde sempre lhe foram caros. Conclama ainda paixões mais recentes pelos filmes
e pela cultura pop japoneses. São referências que não se
mostram apenas como homenagens. Absorvidas, ressurgem com nova energia. Inserem-se num júbilo coreográfico. A exultação eufórica de "Kill Bill", tão forte,
não tem equivalente no cinema contemporâneo: para
encontrá-lo, é preciso voltar ao tempo das comédias
musicais, a "Cantando na Chuva", a "Sete Noivas para
Sete Irmãos".
Almas - Tarantino faz com que a violência, em "Kill
Bill", vire uma espécie de imenso brinquedo: "Uma orgia cinematográfica, um dilúvio de furor visual: um filme do qual se sai coberto de sangue com um imenso
sorriso", escreveu o crítico francês Matthieu Perrin. No
entanto, sem obscurecer a intensidade luminosa dessa
alegria, Uma Thurman, loiro gênio exterminador, é
também portadora de sentimentos humanos. Por ela,
infiltra-se uma fatalidade dolorosa, uma determinação
obsessiva, um tropismo infeliz.
Tarantino tem um formidável poder sobre seus atores. Sabe como e quando fazer com que brilhem, com
que despontem ódios acerados ou irradiem presença
eletrizada. Os personagens não perdem nunca a substância corpórea nem a personalidade individual que
lhes é própria. Isso atinge mesmo os mais inverossímeis
combates: basta pensar no esvaziamento que caracteriza os personagens de "Matrix" e suas lutas, concebidas
como balés abstratos e frios, para perceber quanto as
guerreiras e os guerreiros de Tarantino possuem de carne, osso, sangue e alma.
São essas qualidades que conduzem o silêncio e o fascínio introspectivo do duelo entre as duas mulheres, sutil, hipnótico, incorporado no cenário de neve tão pictural. A consistência dos personagens vai de par com o
modo justo de desenrolar a trama, de dosar os acontecimentos, de concluir episódios ou sugerir segredos que
ficam em aberto.
Amazonas - "Kill Bill", pelo menos o número um, é um
filme de mulheres, em que não há lugar para o perdão.
Elas lutam tão bem quanto os homens ou melhor que
eles. São, porém, intrinsecamente vulneráveis. A mulher que dorme traz um convite à concupiscência do
olhar, como atesta esse tema clássico nas artes do Ocidente. Mas, se ela submerge no estado de coma, ou seja,
num sono sem despertar, é exposta não apenas à observação, mas ao ato concupiscente. Que pode ser amoroso, como contou Almodóvar em "Fale com Ela", mas
que pode ser sórdido e covarde, como aparece em "Kill
Bill".
Outrora - "Bang bang, he shot me down", canta Nancy
Sinatra no filme de Tarantino. A canção fala de lembranças da infância. Ecoa mais longe, porém, sugerindo
uma guerra entre homens e mulheres adultos. "Kill Bill"
tem duas camadas. Uma, de prazer meio infantil diante
dos massacres esplêndidos, que não são, de fato, "para
valer" e possuem algo da brutal violência sem conseqüências, própria aos desenhos animados. Outra, de
subterrânea melancolia nas relações humanas, feitas de
conflitos que não descansam.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br.
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