|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ cultura
Em estudo que parte de um dono de circo no século 19 até o império Disney,
autor destrincha a indústria do lazer e defende teoria geral do entretenimento
Vida inteligente no mundo da diversão
Juliana Monachesi
free-lance para a Folha
O nome do proto-Silvio Santos é Phineas Taylor
Barnum (1810-1891), primeiro showman da
história. Viajando pelos Estados Unidos em
1835, ele levava objetos, animais ou pessoas
estranhas para apresentar ao povo. Uma senhora negra
de 160 anos, segundo afirmava, que teria cuidado de
George Washington, era sua principal atração. Barnum
"foi um dos primeiros a exercer profissionalmente a arte do entretenimento nos EUA", escreve Luiz Gonzaga
Godoi Trigo no livro "Entretenimento - Uma Crítica
Aberta" (ed. Senac, 216 págs., R$ 20), resultado de sua
tese de livre-docência na Escola de Comunicações e Artes da USP. A "proto-Disney World" também foi obra
de Barnum, que em 1851 tentou construir uma cidade
do futuro em Bridgeport, que não vingou. Apenas 131
anos depois um projeto similar seria concluído na Flórida, o "Experimental Prototype Community of Tomorrow", o Epcot Center da Disney.
Por meio de histórias saborosas como
a de Barnum, o autor apresenta na primeira metade do livro uma ampla cronologia do entretenimento moderno,
enveredando por informações sobre feiras mundiais e parques temáticos (a
montanha-russa, por exemplo, é atribuída à vontade de alguns russos de andar
de trenó no verão). Trigo defende uma
"crítica aberta", expondo as visões da esquerda, da direita e dos situacionistas sobre o tema para, no final, delegar ao leitor uma tomada de posição.
Formado em filosofia e turismo, fato que diz ter possibilitado realizar a reflexão desse livro, o autor falou ao
Mais! sobre os impactos do entretenimento na sociedade: "No Brasil, a gente ainda subestima o poder econômico, cultural e social do entretenimento, e as pessoas
não percebem o quanto ele forja as nossas vidas".
A concepção apocalíptica que a Teoria Crítica [de Adorno
e Horkheimer] tinha da cultura de massa está superada?
A realidade atropelou tanto as teorias de entretenimento que o mundo ficou ao mesmo tempo apocalíptico e integrado. Na verdade, o paradigma da pós-modernidade representa uma mudança profunda
nas ciências humanas -é por isso que a pós-modernidade não tem um consenso acadêmico, porque é
uma fratura exposta. Apesar disso, eu acho que Guy
Débord foi no nervo da questão, porque tudo virou
um espetáculo: a política, a religião, a mídia, e isso é
um problema porque pode causar alienação.
Quer dizer, voltamos ao conceito de Marx por um
outro caminho. É uma questão que se coloca, mas, se
as pessoas tiverem capacidade de reflexão e análise,
o entretenimento não é um problema, ele se põe como um problema enquanto alienação devido aos
baixos níveis educacionais e à exclusão.
Ao mesmo tempo, contudo, o entretenimento acaba por
instrumentalizar a sociedade a respeito de determinados temas, papel que a novela historicamente desempenhou no Brasil, por exemplo. Qual a razão disso?
Por um lado, o entretenimento precisa vender -no
caso da televisão, é necessário ter audiência; por outro, a nossa sociedade é hipócrita, e existem alguns
temas a respeito dos quais não fica bem o Estado, a
Igreja ou a imprensa séria falarem. As novelas no
Brasil, de uma forma muito inteligente, colocam em
pauta certos temas a pretexto de socializar, conscientizar ou abrir espaço para o debate, mas também
para garantir maior audiência. Porque, à medida
que se instaura uma polêmica, isso é uma publicidade institucionalizada do produto cultural.
Como o sr. analisa a mudança de posição dos gigantes do
entretenimento, que, acusados de buscar inculcar a ideologia imperialista, passaram a contemplar as minorias
em filmes como Aladdin, Pocahontas etc.?
Por três razões: mercado, sociedade e
cinismo, quer dizer, a sociedade pressionou, então eles tomaram e tomam
o máximo cuidado sobre como irão
representar os índios, os muçulmanos, os africanos e os chineses, porque já houve problemas gravíssimos
em relação a isso.
Do ponto de vista do mercado, eles
querem vender seus produtos e não
querem ter problemas com sociedade e com cultura,
o que torna necessário, para evitar que isso fique
completamente estéril, que haja algo muito inteligente -em "Procurando Nemo", por exemplo, eles
criticam os próprios americanos-, esteticamente
diferente -aí entra a computação gráfica- e criatividade -aí entra a arte pura. Ou seja, existe vida inteligente no mundo do entretenimento.
No Brasil existe um monopólio de recursos públicos destinados à cultura por instituições culturais ligadas a bancos. Como o sr. vê esse paradoxo de o setor financeiro determinar o que é o "bom" entretenimento?
É mesmo um paradoxo, mas, por exemplo, o Mix
Brasil foi bancado pelo grande capital (Unibanco,
Banco do Brasil, Petrobras) e é eminentemente mais
aberto. Eu penso que, à medida que a sociedade for
mais organizada, vai ser mais fácil articular e abrir
espaço para minorias e para os excluídos. Parte desse grande capital percebeu, por sinceridade, que precisa atender a essas demandas, e parte viu uma oportunidade de fazer bons negócios.
O sr. afirma em uma passagem do livro que o "Santo
Graal da economia do entretenimento é o fenômeno".
Que sobrevida o sr. diria que esse paradigma pode ter?
Esse fenômeno não é muito controlado, do contrário a indústria o produziria sempre em literatura, em
música, em cinema, em espetáculos teatrais. [O filme] "A Bruxa de Blair" estourou sem que ninguém
esperasse que desse tão certo. Apesar de não os controlar, a indústria do entretenimento é extremamente competente em absorver esses fenômenos e reproduzi-los infinitamente. E o sistema se tornou tão
poderoso que ele dá risada de si mesmo, dá espaço
para crítica. Então, se por um lado as pessoas estão
alienadas por estarem excluídas do processo cultural-educacional, tem muitas que ou não se importam e são cínicas ou colaboram para que isso aconteça porque lhes interessa particularmente. Não é à toa
que no Brasil uma música chamada "Tô Nem aí" [da
cantora Luka] faz tanto sucesso.
Voltamos à questão da cidadania: quanto mais as
pessoas tiverem acesso à educação, mais reflexão crítica nós teremos, e menos as pessoas ficarão à mercê
desse cenário: só espetáculo. Sempre haverá espaço
para o fenômeno porque o nosso cenário é de espetáculo. O 11 de Setembro é emblemático: mesmo os
críticos que não querem esse sistema de maneira alguma, que são os fundamentalistas religiosos, se utilizam dessa linguagem para atingir seus objetivos.
Por que há tão poucos estudos sobre o entretenimento?
Porque no Brasil a gente ainda subestima o poder
econômico, cultural e social do entretenimento, e a
universidade tem preconceito em acolher essa temática. As pessoas não percebem o quanto ele forja as
nossas vidas, a vida das crianças. Sem contar o fato
de que as maiores empresas do mundo são as do entretenimento. Isso não está sendo devidamente discutido. Assim como há uma teoria da comunicação,
é preciso que a gente comece a criar uma teoria do
entretenimento, porque é muito cômodo para a indústria do entretenimento que ela não seja discutida.
Texto Anterior: ET + cetera Próximo Texto: A paixão pelo real Índice
|