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+Sociedade
De cara fechada
A psicanalista Elisabeth Roudinesco defende a proibição do véu na França, mas critica o uso político do tema por Sarkozy
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ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
A proposta de proibição do véu fechado
-por oposição ao
lenço que deixa ver
o rosto- vem dividindo a sociedade francesa.
A psicanalista Elisabeth
Roudinesco, feminista que
apoiou a lei proibindo o uso de
"símbolos religiosos ostensivos" nas escolas, em 2004, diz
que o debate é vítima de uma
"confusão" criada por jornalistas e políticos conservadores.
A comissão parlamentar que
propôs uma lei contra véus
(leia texto ao lado) usou argumentos políticos: contra a dissimulação do rosto e a afirmação étnica na esfera pública. A
UMP, partido do presidente
Nicolas Sarkozy, fez campanha
pela lei falando em "respeito
aos direitos das mulheres".
O tema também tem sido associado ao debate sobre identidade nacional francesa defendido pelo ministro da Imigração, Eric Besson.
Grupos muçulmanos denunciaram a proposta como discriminatória, e organizações como a Human Rights Watch dizem que tal lei pode colocar em
xeque a liberdade individual.
Roudinesco lança em maio
no Brasil "Retorno à Questão
Judaica" (ed. Zahar), que, em
suas palavras, "combate os extremismos" -sejam os da política israelense, sejam aqueles
que crescem na Europa.
Na entrevista abaixo, as respostas da professora de história na Universidade de Paris 7
alternam reações rápidas e
enérgicas e -em seguida a pausas ao telefone- explicações
meditadas de seu argumento
contra o véu. Leia trechos.
FOLHA - Quando se fala da proibição ao véu fechado, trata-se de uma
questão de direitos da mulher, de
identidade francesa ou simplesmente de racismo?
ELISABETH ROUDINESCO - Essa não
é uma boa pergunta. Racismo
não tem nada a ver com a questão. E o debate sobre identidade francesa, proposto pelo governo, não tem a ver com o trabalho da comissão sobre o véu
integral.
Tenha o cuidado de separar
bem a tomada de posição do governo francês, extremamente
reacionário, da comissão parlamentar que se reuniu para debater o assunto. Não se pode
misturar tudo.
A identidade francesa não se
define. Fala-se então em "identidade nacional", mas a ideia de
nação ruiu. Há uma oposição
frontal de toda a esquerda francesa contra o debate sobre a
identidade nacional. Assinei a
petição contra essa iniciativa.
Querem que os cidadãos respondam a um questionário do
tipo "você canta a "Marselhesa'?", "você gosta de queijo
francês?". É absolutamente ridículo, além de não funcionar.
É como fazer um questionário sobre a identidade brasileira e, caso você não goste de dançar samba e nunca tenha nadado em Copacabana, seja considerado um mau brasileiro.
Quase chegamos ao ponto de
ter um governo tão ridículo
quanto o [do premiê italiano]
Berlusconi. A função presidencial deve representar valores
intelectuais; é uma instituição.
FOLHA - A sra. ainda não falou em
feminismo.
ROUDINESCO - Esses símbolos
religiosos são símbolos de uma
servidão feminina, mas se trata
de uma servidão voluntária. Na
França, quem os usa costumam
ser mulheres convertidas. A lei
não seria suficiente para lutar
contra isso.
FOLHA - As conclusões da comissão
parlamentar são corretas?
ROUDINESCO - Sou a favor de
uma lei que reafirme a proibição de dissimular o rosto em
serviços públicos. É uma questão de identificação. Não é preciso portar identidade, passaporte? Pois a foto precisa bater
com o rosto de quem porta o
documento.
Não é necessário exigir isso
na rua, mas sim em serviços públicos. Não se trata de proibir
esse ou aquele item do vestuário, mas de evitar a dissimulação. É assim em todo o mundo
-exceto, talvez, no Carnaval.
FOLHA - Os muçulmanos na Europa são muitas vezes pobres e pouco
integrados às sociedades dos países
em que vivem. Abolir o véu é uma
forma de a maioria (no caso, francesa) praticar a negação do outro?
ROUDINESCO - Isso é ridículo.
Falo como republicana, laica e
de esquerda. Lembro que a
França é um Estado laico, e que
a tolerância religiosa é tanto
maior quanto menos confessional for o Estado. E não há racismo contra muçulmanos.
Não devemos confundir muçulmanos e imigrantes.
FOLHA - Mas os muçulmanos na
Europa, imigrantes ou não, frequentemente vivem em guetos. Não corremos o risco de fazer deles os judeus deste século?
ROUDINESCO - De modo nenhum, pois não há guetos na
França. E é claro que os muçulmanos não são os judeus deste
século.
FOLHA - O Reino Unido e outros
países discutem a proibição ao véu.
Acredita que se trata de uma tendência no mundo ocidental?
ROUDINESCO - A França é laica, e
o Reino Unido é mais "comunitário". Deixou se desenvolverem o véu, o lenço, usados de
modo generalizado, incluindo
crianças.
Com efeito, eu diria que a Inglaterra cometeu o erro de não
ser suficientemente laica, mas
comunitarista demais.
Isso acabou trazendo problemas, criando guetos. Não tendo
lutado suficientemente pela
laicidade, a Inglaterra agora se
encontra confrontada pela
questão do islamismo radical.
E é preciso compreender que
só os Estados laicos podem garantir um verdadeiro funcionamento democrático.
Não se pode, portanto, deixar
os religiosos imporem suas leis.
Se o fizerem, será uma perda
para a democracia.
E só a democracia pode respeitar os cultos.
É claro que, com a ascensão
do islamismo radical, há tentativas de desestabilizar os Estados laicos; portanto não se trata
de uma tendência do Ocidente
-é um problema político.
A vontade de dominação religiosa, em todas as suas formas,
é sempre problemática para os
Estados democráticos e laicos.
Vocês têm esse problema no
Brasil, com a ascensão dos
evangélicos.
Na Europa, temos um crescimento dos fundamentalismos
religiosos de todos os tipos, notadamente o católico. É também um grande problema.
FOLHA - Podemos esperar futuramente, como consequência, novas
leis na França e em outros países?
ROUDINESCO - Não, pois, no que
concerne à Igreja Católica, é
mais do que certo que ela tem
de obedecer à Constituição do
país. Não temos tantos evangélicos quanto vocês, mas temos o
catolicismo.
A Igreja Católica, extremamente reacionária, se opõe ao
aborto, à liberdade dos homossexuais, assim como o islamismo radical também se opõe. É
contra isso que os Estados laicos devem lutar.
Na França, consegue-se separar a igreja do Estado, mas o
perigo fundamentalista existe
na Europa, em todos os cantos.
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