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Ponto de fuga
Os cantos na elipse
Jorge Coli
especial para a Folha
É bem provável que tenha sido Wagner quem inventou, em 1876, os festivais de ópera. Ao fazê-lo, pensava
em suas próprias obras, mas o princípio se alargou:
óperas apresentadas durante o verão, em lugares privilegiados pela beleza, pelo encanto e pela acústica, com
produções e elencos fora do comum. Esses festivais se
multiplicaram durante o século 20, atraindo um público elegante, com pretensões intelectuais, como nos de
Glyndebourne ou Salzburgo. Em Aix-en-Provence,
Mozart opõe às espessas paixões românticas de Wagner
a leveza transparente, mas profunda, do século 18.
O caso do Festival de Verona é um pouco diferente.
Criado em 1913 pelo grande tenor Zenatello, era uma
resposta italiana ao germanismo de Wagner. Magnífico
o lugar escolhido, a Arena de Verona, anfiteatro romano erigido nos tempos do imperador Augusto. Permite
reunir milhares de pessoas em ótimas condições de visibilidade e acústica para representações grandiosas. Os
espetáculos são populares, feitos para multidões. Os frequentadores chiques de casas de ópera e de festivais requintados torcem um pouco o nariz para a Arena de
Verona. É que a ópera perdeu, ao longo do século 20, a
força que movia um público numeroso e diversificado
de um ponto de vista social, capaz de sentir vibrações
musicais atingindo diretamente o coração.
Verona soube manter ainda esses frêmitos que o esnobismo põe à distância. No espaço elíptico da Arena
há uma atmosfera única, com tantas pessoas na mesma
expectativa, aguardando a voz comovedora e a beleza
da melodia.
Campeonato - Mais a ópera se tornou "highbrow",
mais os espetáculos "esfriaram" e velhos hábitos se perderam. Isto aconteceu com os bis. Antes, interrompia-se a ação com aplausos e pedidos para que um trecho
bem cantado fosse repetido, o que contribuía para a eletricidade intensa das representações. Mas, aos poucos,
o bis foi sendo considerado desrespeitoso à integridade
da obra, e o público terminou aprendendo a se comportar. Na Arena de Verona, porém, os bis ainda são, de vez
em quando, consentidos, o que acentua a natureza atlética da ópera: sem sonorização, chegar, com nuanças,
ao agudo final de uma ária, cantada ao ar livre para 15
mil pessoas e, ainda mais, repeti-la é uma proeza. José
Cura foi bisado nas duas primeiras récitas de "Turandot". "Va Pensiero", coro de "Nabucco", é bisado regularmente: o maestro Daniel Oren, numa apresentação,
irritou-se contra os aplausos que cobriram o longo pianíssimo final. Apostrofou o público, mas retomou o trecho, ouvido pela segunda vez num silêncio religioso até
que a última ressonância desaparecesse.
Pompas - O palco, na Arena de Verona, é uma vastidão.
É propício a óperas de grande espetáculo e vocalmente
generosas. Nada de ousado no repertório, para o qual os
diretores de cena desdobram efeitos suntuosos, em tom
razoavelmente kitsch. Franco Zefirelli é mestre nessas
encenações sobrecarregadas: se ele obteve unidade densa em sua atual "Aida", diluiu uma "Carmen" em concepção mal articulada.
No oposto, emergiu "La Traviata", em única apresentação, concebida na forma "semicênica", expressão que
os italianos andam empregando agora para designar espetáculos com produção econômica e reduzida. Ópera
intimista, "La Traviata", com Angela Gheorghiu e José
Cura, mostrou-se, em cenários despojados, concentrada e forte, talvez o ponto mais alto de toda a temporada.
Prazeres - É erro supor que o caráter popular e pomposo das óperas montadas na Arena de Verona signifique
sacrifício de suas qualidades musicais.
As possíveis críticas aos diferentes intérpretes debatem sempre em nível muito alto, e nenhuma apresentação deixa indiferente. A maioria do público é de amadores verdadeiros, que sabem o que estão ouvindo, coisa
cada vez mais rara nos grandes teatros internacionais.
Eles dosam, com boa compreensão, os aplausos para
cada cantor; sabem vaiar, se lhes parecer necessário. Samuel Ramey, José Cura, Hei-Kyung Hong, Gheorghiou
foram algumas das vozes esplêndidas que ressoaram
neste ano na velha arena.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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