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ARTIGO
O lugar mais perigoso do mundo
SALMAN RUSHDIE
A crise atual na Caxemira
parece um replay da última,
provocando no espectador uma
sensação de déjà vu. Três anos
atrás, um governo de coalizão fraco na Índia, liderado pelo partido
nacionalista hindu Bharatiya Janata (BJP), acabara de perder um
voto de confiança no Parlamento
indiano e aguardava, nervoso,
uma eleição geral. Imediatamente, começou a bater os tambores
de guerra em torno da Caxemira.
Agora outro governo de coalizão, ainda liderado pelo BJP e
profundamente maculado pelo
envolvimento de partidários do
BJP no massacre de centenas de
muçulmanos no Estado de Gujarat, pode estar prestes a perder
mais uma eleição geral. E o governo está mais uma vez instigando
uma guerra na Caxemira e pedindo à população que se una em torno de seus líderes.
Três anos atrás, no Paquistão, o
governo igualmente fraco do premiê Nawaz Sharif tinha levado a
economia nacional à falência e estava enfrentando acusações de
corrupção fartamente documentadas. Também Sharif tinha muito a lucrar com a febre de guerra
-alimentada pelos diversos grupos terroristas muçulmanos que
operavam na Caxemira. O general
paquistanês da linha dura então
responsável pela comunicação
com esses grupos terroristas e o
treinamento deles se chamava
Pervez Musharraf (só para que fique bem claro quem realmente é
Musharraf, hoje presidente do Paquistão, vale notar que alguns
desses grupos quase certamente
foram enviados pelo serviço de
inteligência do Paquistão a campos de treinamento da Al Qaeda
no Afeganistão).
Quando Nawaz Sharif cedeu
diante da pressão dos EUA e prometeu refrear os terroristas, o general Musharraf ficou furioso. Alguns meses mais tarde, ele deu
um golpe de Estado, derrubou
Sharif e assumiu o poder.
Será que o resultado, desta vez,
também será um replay do que
aconteceu há três anos? Poderá o
conflito ser contido de novo?
Desta vez é o presidente Musharraf quem está sendo pressionado pelos EUA para que reprima
o terrorismo caxemiriano. Ele
vem num jogo duplo, prendendo
centenas de integrantes dos grupos que fomentou no passado,
mas soltando a maioria deles, sem
alarde, pouco depois. Vendo-se
num impasse, pressionado por
duas necessidades opostas
-acalmar seu principal patrocinador internacional e agradar ao
público doméstico-, Musharraf
pode acabar por fazer o que mandam seus instintos políticos mais
profundos: apoiar (abertamente
ou por baixo do pano) os radicais
islâmicos que, há mais de uma década, vêm semeando o terror no
antes idílico vale da Caxemira.
Com suas referências a uma
"batalha decisiva", o premiê indiano, Atal Behari Vajpayee, deixa claro que, para ele, a ação militar direta que resulte na reconquista de, se não todo, pelo menos
uma parte do território caxemiriano que hoje se encontra sob o
controle do Paquistão é a única
maneira de impedir ataques como a chacina atroz ocorrida em
maio, quando mulheres e crianças foram massacradas numa base do Exército indiano.
Vajpayee sabe que o governo indiano é pouco popular no vale e
que muitos caxemirianos vêem o
Exército indiano como um exército de ocupação. Mas ele também deve ter calculado que, na
opinião da comunidade internacional e na de muitos caxemirianos assustados e que estão vivendo na miséria quase total, o prolongado patrocínio do terrorismo
por parte do Paquistão prejudicou a legitimidade moral deste.
Se houvesse guerra entre a Índia
e o Paquistão, ela chegaria a se
tornar nuclear?
Com o "timing" sugestivo de
seus testes de mísseis, sua recusa
em adotar a política de não ser a
primeira a recorrer às armas nucleares e sua retórica agressiva, o
Paquistão está tentando dar a impressão de que não hesitaria em
lançar mão de seu arsenal nuclear.
A liderança militar indiana já disse que, se o país for atacado com
bombas nucleares, responderá
com força máxima e que, num
conflito dessa natureza, a Índia
sofreria danos pesados, mas sobreviveria, enquanto o Paquistão
seria totalmente aniquilado.
Mas será que o Paquistão cogitaria seriamente amarrar uma arma nuclear à cintura, entrar no
bazar lotado de pessoas que é a
Índia e cometer o maior atentado
suicida da história?
Musharraf não dá a impressão
de ser candidato a mártir. Mas e se
estivesse perdendo uma guerra
convencional? Se a avassaladora
superioridade numérica terrestre,
aérea e marítima da Índia lhe garantisse a vitória e o Paquistão
perdesse o tão prezado território
da Caxemira, poderia a voz da razão ser esquecida?
Pior hipótese de todas: se a fúria
paquistanesa diante de uma derrota para a Índia resultasse na
derrubada de Musharraf pela linha dura islâmica, as ogivas nucleares do Paquistão cairiam nas
mãos de pessoas para quem o
martírio é uma meta superior à
paz, pessoas que atribuem um valor maior à morte do que à vida.
O Paquistão está pedindo a intervenção da comunidade internacional, mas esse pedido deve
ser ouvido com cautela. Há meio
século o Paquistão vem procurando internacionalizar a disputa em
torno da Caxemira, enquanto a
Índia tem constantemente descrito esse esforço como ingerência
em seus assuntos internos.
Os dois lados estão presos numa
situação em que não conseguem
escapar do discurso velho, das estratégias velhas e do velho jogo de
"quem tem medo de quem?" que
está sendo jogado em torno da linha de controle que divide a Caxemira. Como dois lutadores envelhecidos que se digladiam em
cima de um penhasco, Índia e Paquistão estão atracados e rolando
cada vez mais perto do precipício.
Mas o ódio antigo que os separa
já não diz respeito apenas a eles. O
risco de um enfrentamento nuclear, por menos provável que
possa ser, faz da Caxemira o problema de todos. Neste momento,
a Caxemira é o lugar mais perigoso do mundo. Esses combatentes
velhos e patéticos precisam ser separados. E logo. Sim, isso provavelmente significa intervenção
por parte do Ocidente, embora a
Rússia pareça estar ansiosa para
ajudar também, o que é útil.
Mas essa intervenção não deveria ser a que o Paquistão está querendo. O objetivo não é frear a suposta agressão indiana, mas deixar o mundo mais seguro para todos nós. A situação só poderá ser
estabilizada se a Índia e o Paquistão forem forçados a dar um passo para trás, de preferência para
fora das fronteiras históricas e
não divididas da Caxemira. Essa
solução da questão da Caxemira
terá de ser imposta desde fora às
relutantes partes principais e vai
exigir o envio de uma grande força de manutenção da paz para
apoiar a Caxemira como região
autônoma. Mas quem no Ocidente quer isso? Não seria apenas um
replay do velho desejo de poder
colonialista-imperialista? E, afinal, quem vai pagar por toda essa
manutenção da paz?
As respostas a essas perguntas
são outras perguntas: qual é a alternativa? Você tem alguma idéia
melhor? Ou será que deveríamos
apenas guardar distância e fazer
figa, cruzando nossos dedinhos
pós-coloniais e não-imperialistas?
Será que teremos de ver nuvens
em forma de cogumelo abrindo-se sobre Nova Déli e Islamabad
para que concordemos em abrir
mão de nossos preconceitos entranhados e tentar algo que seja
capaz de realmente funcionar?
Nas palavras imortais das Spice
Girls, "será que este déjà vu não
vai terminar nunca?"
Salman Rushdie, 54, escritor britânico
de origem indiana, é autor de "Os Versos
Satânicos".
Tradução de Clara Allain
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