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São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

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EUA

Círculo de intelectuais convencidos do valor universal do modelo americano estimula o governo a agir em todo o mundo

"Ativismo" de Bush é obra neoconservadora

11.set.2001/Reuters
George W. Bush reúne-se com assessores no Salão Oval da Casa Branca após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001


Bush governa com aqueles que, a partir dos anos 60, se voltaram contra aquele consenso centrista de coloração social- democrata que era dominante na época

Eles professam idéias liberais sobre sociedade e costumes. Seu objetivo não é proibir o aborto ou impor um horário para orações nas escolas. Sua ambição é outra

ALAIN FRACHON
DANIEL VERNET
DO "LE MONDE"

Foi dito em tom de elogio sincero: "Vocês, sem dúvida, são os melhores cérebros de nosso país" -tão bons, acrescentou George W. Bush, "que meu governo emprega 20 de vocês".
O presidente discursava para os membros do American Enterprise Institute, em Washington, no dia 26 de fevereiro. Ele rendia homenagem a um "think tank" que é um dos bastiões do neoconservadorismo norte-americano. Bush saudava uma escola de pensamento que marca sua Presidência e revelava o quanto deve a uma corrente intelectual cuja influência hoje predomina no país. Reconhecia estar cercado de neoconservadores e atribuía a eles um papel essencial em suas escolhas políticas.
No início dos anos 60, John F. Kennedy recrutou entre o centro-esquerda, em especial na Universidade Harvard, alguns professores escolhidos entre ""the best and the brightest" -os melhores e mais inteligentes, segundo a expressão empregada pelo ensaísta David Halberstam. George W. Bush governa com justamente aqueles que, a partir dos anos 60, se revoltaram contra aquele consenso centrista de coloração social-democrata que era dominante na época. Quem são eles? Qual é sua história? Quem foram seus mestres intelectuais? Quais são as origens intelectuais do neoconservadorismo ""bushiano"?

Fundamentalistas
Os neoconservadores não devem ser confundidos com os cristãos fundamentalistas, também encontrados no círculo que cerca Bush. Eles não têm nada a ver com o ressurgimento de um integrismo protestante saído dos Estados do sul do país -o chamado "cinturão bíblico" (Bible Belt)-, que é uma das forças em ascensão no Partido Republicano hoje.
O neoconservadorismo vem da Costa Leste, embora também seja um pouco californiano. Seus inspiradores têm perfil ""intelectual"; com frequência são nova-iorquinos, com frequência judeus e começaram na ""esquerda". Alguns ainda se dizem democratas. Em lugar de uma Bíblia, carregam uma revista literária ou política; vestem ternos de tweed, e não os paletós azuis trespassados dos televangelistas do sul. Na maior parte do tempo, professam idéias liberais em matéria de sociedade e costumes. Seu objetivo não é proibir o aborto ou impor um horário para orações nas escolas. Sua ambição é outra.
Mas, como diz Pierre Hassner, a singularidade da administração Bush é o fato de ter assegurado a união entre as duas correntes - neoconservadores e cristãos fundamentalistas. Os últimos são representados no governo por um homem como o secretário da Justiça, John Ashcroft, enquanto os primeiros têm um de seus principais representantes, Paul Wolfowitz, no cargo de subsecretário da Defesa. Bush, que fez uma campanha de centro-direita, sem assumir posição política muito precisa, efetuou um coquetel ideológico espantoso e detonador ao unir Wolfowitz e Ashcroft, neoconservadores e fundamentalistas cristãos -dois planetas opostos.
Ashcroft lecionou na Universidade Bob Jones, na Carolina do Sul, academicamente desconhecida, mas praça forte do fundamentalismo protestante. Na universidade veiculavam-se idéias ressaltando o anti-semitismo. Judeu, de uma família de professores, Wolfowitz é um produto brilhante das universidades da Costa Leste. Dois de seus professores figuravam entre os mais eminentes dos anos 60: Allan Bloom, discípulo do filósofo judeu de origem alemã Leo Strauss, e Albert Wohlstetter, professor de matemática e especialista em estratégia militar. Esses dois nomes terão grande influência. Os neoconservadores se colocaram sob a sombra tutelar do estrategista e do filósofo.

Crítica ao status quo
Eles tampouco têm as características das pessoas que querem garantir a ordem estabelecida. Eles rejeitam praticamente todos os atributos do conservadorismo político tal como é compreendido na Europa. Um deles, Francis Fukuyama, famoso por seu "O Fim da História", diz: "Os neoconservadores não querem de maneira alguma defender a ordem vigente, fundada sobre a hierarquia, a tradição e uma visão pessimista da natureza humana".
Idealistas e otimistas, convencidos do valor universal do modelo democrático americano, querem pôr fim ao status quo, ao consenso aguado e frouxo. Acreditam na política que transforma as coisas.
No front interno, eles esboçam a crítica do Estado de Bem-Estar Social, produto de Presidências democratas (Kennedy, Johnson) e uma republicana (Nixon). Em matéria de política externa, em 1970 eles criticavam a dissuasão, dizendo que ela beneficiava mais a URSS do que o Ocidente.
Críticos do que foi feito nos anos 60 e contrários ao realismo diplomático de um Henry Kissinger, são contrários ao establishment. Irving Kristol e Norman Podhoretz, fundadores da revista "Commentary", são dois dos padrinhos nova-iorquinos do neoconservadorismo. Ambos vieram da esquerda e questionaram o comunismo soviético desde uma perspectiva de esquerda.
Em "Ni Marx ni Jésus" (1970), Jean-François Revel descreveu uma América mergulhada nos tumultos da revolução social dos anos 60. Hoje ele explica o neoconservadorismo como uma reação contrária ao clima da época, principalmente no front interno. Na esteira de Strauss, os neoconservadores criticam o relativismo cultural e moral dos anos 60. Para eles, o relativismo conduz à correção política dos anos 80.
É outro intelectual de alto escalão que trava a batalha nesta área: Allan Bloom, da Universidade de Chicago. Para Bloom, grande intérprete dos textos clássicos, à imagem de seu mestre Strauss, uma parte do legado dos anos 60 "conduz ao desprezo da civilização ocidental por ela mesma", explica Jean-François Revel. Em nome do politicamente correto, qualquer cultura vale tanto quanto outra, e Bloom se pergunta sobre os estudantes e os professores que se dispõem sem problemas a admitir culturas não-européias que frequentemente atentam contra as liberdades e que, ao mesmo tempo, manifestam severidade extrema em relação à cultura ocidental, recusando-se a reconhecer sua superioridade em qualquer aspecto.

Expansão
Embora o politicamente correto dê a impressão de dominar o cenário cultural, os neoconservadores marcam alguns pontos. O livro de Bloom faz um sucesso enorme. Na área da política externa, uma verdadeira escola neoconservadora foi tomando forma. Criam-se redes de troca. Nos anos 70, o senador democrata pelo Estado de Washington Henry Jackson (morto em 1983) critica os grandes acordos sobre o desarmamento nuclear. Ele forma uma geração de jovens extremamente interessados em estratégia, geração essa da qual fazem parte Richard Perle e William Kristol, que fez os cursos de Allan Bloom.
Dentro e fora do governo, Perle encontra Paul Wolfowitz, ambos trabalhando para Kenneth Adelman, outro pensador que despreza a política da dissuasão, ou o subsecretário de Estado Charles Fairbanks. Em matéria de estratégia, o mestre que forma seu pensamento é Albert Wohlstetter, pesquisador da Rand Corporation, assessor do Pentágono e grande especialista em gastronomia. Morto em 1997, Wohlstetter é um dos pais da doutrina nuclear americana.
Mais exatamente, ele está na origem do questionamento da doutrina tradicional, de "destruição mútua assegurada" (MAD, na sigla em inglês), que fundamentava a dissuasão. De acordo com essa teoria, na medida em que os dois blocos tinham a capacidade de infligir danos irreparáveis um ao outro, seus líderes hesitariam em dar o "primeiro tiro" nuclear.
Para Wohlstetter e seus alunos, a MAD era ao mesmo tempo imoral -pela destruição imposta aos civis- e ineficaz, pela neutralização mútua dos arsenais. Nenhum estadista dotado de razão decidiria pelo "suicídio recíproco". Wohlstetter propunha, ao contrário, uma "dissuasão gradativa", ou seja, a aceitação de guerras limitadas, eventualmente utilizando armas nucleares táticas, com armas "inteligentes", de alta precisão, capazes de atacar os equipamentos militares do inimigo.
Ele criticava a política de controle das armas nucleares acertada com Moscou. Para Wohlstetter, ela equivalia a restringir a criatividade tecnológica dos EUA em nome da manutenção de um equilíbrio artificial com a URSS.
Ele seria ouvido por Ronald Reagan, que lançou a Iniciativa de Defesa Estratégica (SDI), apelidada de ""Guerra nas Estrelas", ancestral da defesa antimísseis e retomada pelos discípulos de Wohlstetter. Estes seriam os partidários mais fervorosos da condenação unilateral do Tratado Antimísseis Balísticos, que, a seus olhos, impedia os EUA de desenvolver sistemas de defesa. E eles convenceram George W. Bush.
No caminho de Perle e Wolfowitz cruzamos, também, com Elliott Abrams, hoje responsável pelo Oriente Médio no Conselho de Segurança Nacional, na Casa Branca, e Douglas Feith, um dos subsecretários da Defesa. Todos se unem para manifestar seu apoio incondicional à política conduzida por Israel, seja qual for o seu governo. Esse apoio incondicional explica o fato de terem endossado Ariel Sharon sem hesitar. Os dois mandatos do presidente Ronald Reagan (1981-89) tinham proporcionado a vários deles sua primeira oportunidade de atuar no governo.
Em Washington, os neoconservadores vão tecendo sua rede. Ao longo dos anos, vão marginalizando os intelectuais de centro ou do centro-esquerda democrata, para ocupar um lugar preponderante nos espaços onde se forjam as idéias que vão dominar o cenário político. São revistas como ""National Review", ""Commentary", ""The New Republic" (dirigida, por algum tempo, pelo jovem ""straussiano" Andrew Sullivan), o semanário ""The Weekly Standard", pertencente ao grupo Murdoch, cuja rede de televisão Fox News garante a difusão da versão vulgarizada do pensamento neoconservador. São páginas editoriais como as do "Wall Street Journal", que, sob a égide de Robert Bartley, se abrem despudoradamente ao militantismo neoconservador. São "think tanks" como o Instituto Hudson, a Fundação Heritage ou o American Enterprise Institute. São, também, famílias: filho de Irving Kristol, o cosmopolita William Kristol dirige o "The Weekly Standard"; um filho de Norman Podhoretz trabalhou para a administração Reagan; e Daniel Pipes, filho de Richard Pipes -judeu polonês que emigrou para os EUA em 1939, professor de Harvard e um dos maiores críticos do comunismo soviético, condena o islamismo, no qual discerne o novo totalitarismo que ameaça o Ocidente.
Esses homens não são isolacionistas -pelo contrário. De modo geral, possuem uma cultura vasta e um grande conhecimento de países estrangeiros, cujas línguas frequentemente dominam. Eles não têm nada a ver com o populismo reacionário de um Patrick Buchanan, que advoga o retorno da América sobre si mesma e seus próprios problemas internos.
Os neoconservadores são internacionalistas, partidários de um ativismo inequívoco dos EUA no mundo. Não o são à maneira do velho Partido Republicano (de Nixon ou George Bush, pai), confiando nos méritos de uma "realpolitik" que pouco se importava com a natureza dos regimes com os quais os EUA faziam aliança para defender seus interesses. Kissinger é seu antimodelo. Mas tampouco são internacionalistas segundo a tradição democrata de Woodrow Wilson, Jimmy Carter ou Bill Clinton. Esses, por sinal, são vistos como ingênuos que esperam que as instituições internacionais difundam a democracia.
Por filiação ou afinidade (Allan Bloom, Paul Wolfowitz, William Kristol...), a filosofia de Strauss serviu de substrato teórico para o neoconservadorismo. Strauss praticamente não escreveu sobre a atualidade política ou as relações internacionais. Ele era lido e reconhecido por sua imensa erudição na área dos textos gregos clássicos ou das escrituras sagradas cristãs, judaicas e muçulmanas. Era saudado pelo poder de seu método interpretativo.
Leo Strauss nasceu em Hesse, em 1899, e deixou a Alemanha na véspera da chegada de Hitler ao poder. Após uma breve estadia em Paris e depois no Reino Unido, estabeleceu-se em Nova York, onde lecionou na Nova Escola de Pesquisas Sociais antes de fundar, em Chicago, o Comitê de Reflexão Social, que iria se tornar ponto de origem dos ""straussianos".
As raízes do neoconservadorismo não se limitam à escola straussiana. Mas a referência a Strauss forma um pano de fundo coerente com o neoconservadorismo atuante hoje em Washington. Ela permite compreender como o movimento não é mero palavrório de alguns falcões e em que medida se apóia sobre bases teóricas, possivelmente contestáveis, mas certamente não medíocres.

Otimismo messiânico
Importância do regime político, elogio da democracia militante, exaltação quase religiosa dos valores americanos e oposição decidida à tirania: vários dos temas que constituem a marca registrada dos neoconservadores que povoam a administração Bush podem ser derivados dos ensinamentos de Strauss, em alguns casos corrigidos pelos ""straussianos" de segunda geração.
Uma coisa os separa de seu suposto mestre: o otimismo tingido de messianismo que os neoconservadores empregam para levar as liberdades ao mundo (ao Oriente Médio amanhã, à Alemanha e ao Japão ontem), como se o voluntarismo político pudesse modificar a natureza humana. É mais uma ilusão que talvez seja bom difundir entre a população mais ampla, mas à qual o filósofo não se deve deixar apegar.
Resta um enigma: como o ""straussismo", que começou fundamentado numa transmissão oral em grande medida decorrente do carisma do mestre e que se exprimia em livros austeros, textos sobre outros textos, conseguiu estender sua influência até um governo? Pierre Manent, que dirige o Centro de Pesquisas Raymond Aron, em Paris, propõe a idéia de que o ostracismo ao qual teriam sido relegados os discípulos de Strauss nos meios acadêmicos americanos os conduziu ao serviço público, aos "think tanks" e à imprensa. Eles têm uma representação relativamente exagerada em termos de seu número real.
Outra explicação complementar diz respeito ao vazio intelectual que se seguiu ao fim da Guerra Fria e que os "straussianos" e, depois deles, os neoconservadores parecem ter sido os mais preparados para preencher. A queda do Muro de Berlim lhes deu razão, na medida em que a política agressiva de Reagan com relação à URSS a precipitou. Os atentados de 11 de setembro de 2001 confirmaram sua tese sobre a vulnerabilidade das democracias diante das diversas formas de tirania. Da guerra no Iraque, eles sentirão a tentação de concluir que a derrubada dos regimes ""maus" é possível e desejável. Diante dessa tentação, o apelo ao direito internacional pode considerar-se dotado de certa legitimidade moral. Mas, até nova ordem, falta a ele o poder de convicção e de restrição.

Tradução de Clara Allain

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