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São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

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IRAQUE OCUPADO

Para o historiador de Princeton, um vizinho livre "seria uma ameaça aos regimes autoritários", como o iraniano

Irã teme Iraque democratizado, diz Lewis

DE NOVA YORK

Governos como o do Irã temem a democratização do Iraque e já agem para atrapalhar, afirma o historiador Bernard Lewis.
Sua opinião tem grande peso nos EUA no debate acerca da guerra, para o bem e para o mal.
Para muitos, o acadêmico de Princeton é uma das maiores autoridades em Oriente Médio nas universidades americanas.
Outros apontam que seus argumentos servem de base ideológica para o governo, e os elogios que recebeu de gente como o subsecretário da Defesa, Paul Wolfowitz, só fizeram engrossar esse último coro.
Uma coisa é fato: Lewis mostra-se popular. Seu principal livro, "What Went Wrong" (o que deu errado), ainda nem saiu da lista dos mais vendidos, e ele já coloca um novo título nas prateleiras, "The Crisis of Islam" (a crise do islã), que de imediato se encaixou entre os best-sellers.
Para ele, o Oriente Médio está "sem dúvida melhor" do que antes da guerra. "Uma das maiores fontes do mal foi removida." (ROBERTO DIAS)

Folha - O sr. diz que não existe palavra em árabe para "Arábia". E para "democracia", existe?
Bernard Lewis -
O termo aparece num único texto clássico de que tenho conhecimento. O autor desenvolveu uma genuína palavra árabe, mas não pegou. Quando começaram a falar sobre democracia, no século 19, tomaram emprestada a palavra européia. Isso não quer dizer que não tenham idéias sobre o assunto.
O ponto que é importante ter em mente é que o tipo de governo mantido por Saddam Hussein no Iraque não é típico do Oriente Médio.
O partido Baath é réplica exata dos partidos nazista e fascista. É uma importação da Europa, a única que teve sucesso.
Na era de modernização do século 19 e início do século 20, eles tentaram alguns modelos europeus, com constituição e parlamentos eleitos, e nenhum deles funcionou.

Folha - Como os EUA vão lidar com as pessoas do partido Baath agora? Poderão disputar eleições ou vai acontecer como com os nazistas na Alemanha do pós-guerra?
Lewis -
Minha opinião é que o Iraque precisa de um processo de "desbaathificação", como a desnazificação na Alemanha. Isso é essencial. De outra forma, a tirania vai voltar de forma modificada. A desbaathificação levaria algum tempo. Não posso dizer quanto, só acho que vai ser mais simples do que foi na Alemanha.
Mas, depois disso, o desenvolvimento gradual de instituições que poderemos reconhecer como instituições democráticas seria perfeitamente possível. A desbaathificação é pré-requisito essencial.

Folha - Os EUA irão aceitar um governo de radicais islâmicos caso eles vençam as eleições, repetindo-se o que aconteceu na Argélia no início dos anos 90?
Lewis -
Isso é olhar muito longe no futuro. Concordo que é uma possibilidade, mas não posso prever como seria. Concordo que é um perigo. Acho que esse perigo pode ser evitado, não indo muito rápido. E fazendo algo que não houve na Argélia, que é dar prosperidade econômica.

Folha - Suponha que a democracia seja instalada. Quanto tempo levaria para o Iraque dar o salto de desenvolvimento?
Lewis -
O Iraque tem algo que a maioria dos países na região não tem: uma classe média educada.
E há outro fator muito importante: o Iraque fez mais do que qualquer outro país muçulmano pela emancipação das mulheres. Não falo sobre direitos das mulheres, porque no Iraque ninguém tem nenhum direito, nem homens. Mas as mulheres tinham oportunidades, uma chance melhor de ter educação no Iraque. Isso é muito importante. Mulheres são metade da população.

Folha - Qual o impacto real que uma democracia no Iraque poderia ter sobre a região?
Lewis -
Isso é justamente o que preocupa as pessoas. Se você olhar nos argumentos sobre a democracia, há dois temores. Algumas pessoas acham que não vai funcionar, sobretudo na Europa e na América.
No Oriente Médio, é diferente: há o temor de que ela de fato funcione. Isso seria obviamente uma ameaça aos regimes ditatoriais e autoritários.
Os iranianos, por exemplo, estão claramente muito preocupados. Já estão fazendo tudo o que podem para criar problemas. Há evidência muito clara do envolvimento iraniano nos protestos contra os EUA. Vai ficar pior se não forem parados agora.
O indicador mais confiável sobre o que as pessoas pensam no Oriente Médio é a piada política. É a única forma de comentário autêntica e não censurada. Dou-lhe duas recentes piadas do Irã.
Uma delas diz que dois iranianos estão conversando sobre a situação do seu país até que um deles fala: "O que nós precisamos no Irã é um Osama bin Laden". O outro responde: "O que é isso, você está maluco?". Ele diz: "Não, é que aí os americanos viriam nos salvar".
Outra fala que, quando os aviões americanos estavam voando ali perto, muitos iranianos colocaram sinais em inglês em seu telhados dizendo: "Por aqui, por favor".
Há muitos sinais de descontentamento no Irã. Não apenas piadas, mas evidências sérias. O governo sabe disso. É por isso que está muito preocupado com o que está acontecendo no Iraque.

Folha - Há algum modelo de democracia muçulmana para o qual os EUA devam olhar?
Lewis -
O país muçulmano que desenvolveu com mais sucesso uma democracia foi a Turquia.
Como se define democracia? Acho que uma definição muito simples foi dada pelo professor Huntington. Diz: podemos chamar um país de democrático quando ele mudou seu governo duas vezes por eleições.
O "duas vezes" é importante. Às vezes um governo permite a votação, e o que acontece que é os novos governantes asseguram-se de que não cairão pelo mesmo caminho pelo qual subiram. Isso aplica-se particularmente aos grupos religiosos extremistas. O slogan deles é "um voto, um homem, uma única vez".
Na Turquia eles mudaram seu governo muitas vezes por eleições. Ocasionalmente por outros método, mas sobretudo por eleições.
O que os turcos mostraram é que: 1) é difícil instalar a democracia num país com tradições de obediência; 2) mas isso é possível.


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