|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ascensão de extremistas expõe dilema da democracia
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Desde 21 de abril último, quando o líder de extrema direita Jean-Marie Le Pen passou para o segundo turno da eleição presidencial francesa -com um programa que contém pontos no mínimo controversos-, uma pergunta inquieta a cena política do país:
partidos "não-democráticos" devem ter o direito de participar do
jogo político democrático ou não?
Embora, por princípio, qualquer formação política deva poder expor suas idéias na arena política de um sistema democrático,
vários aspectos da questão tornam a resposta bastante complexa, de acordo com especialistas
ouvidos pela Folha. Afinal, entre
outros pontos, a definição do que
é ou não é democrático depende
do quadro legal de cada país, do
contexto histórico do local em
que o tema é debatido etc.
Segundo Marc Sadoun, do Centro de Estudo da Vida Política
Francesa, a questão já foi tratada
tanto no âmbito da filosofia quanto no da prática política. "Baseando-se no conceito do direito de
defesa da democracia liberal, boa
parte dos filósofos liberais, incluindo os da chamada "esquerda
moderna" -como o alemão [Jürgen" Habermas e o americano
[John" Rawls-, estudou o tema."
"Atualmente, as doutrinas desses dois autores norteiam o debate filosófico sobre a democracia liberal. Ou seja, sobre o grau de liberdade que pode ou deve haver
num sistema democrático. Essas
doutrinas buscam encontrar um
ambiente no qual indivíduos que
não compartilham os mesmos valores e as mesmas concepções políticas possam chegar a um consenso que permita a evolução do
debate", acrescentou Sadoun.
Apesar de terem interpretações
diferentes do funcionamento do
sistema, Habermas e Rawls procuram estabelecer os princípios
comuns do liberalismo, o que, na
prática, significa determinar até
que ponto a democracia liberal
deve admitir a participação de extremistas em sua cena política.
"Para Habermas, os indivíduos
devem pôr de lado questões absolutamente irreconciliáveis, às
quais ninguém estaria disposto a
renunciar, para poder debater temas que podem propiciar um
consenso. Assim, a religião, por
exemplo, não pode ser discutida
no espaço político, pois envolve
dogmas", explicou Sadoun.
Todavia, para Habermas, isso
pressupõe que as pessoas que participam da discussão ou da deliberação política compartilhem
um certo número de valores para
que, a partir deles, possam dar seguimento ao processo político.
Ademais, isso pode englobar tanto valores quanto procedimentos.
Este último aspecto deu origem à
chamada "democracia de procedimentos", segundo Sadoun.
Assim, no caso prático da Frente Nacional (FN), de Le Pen, o
simples fato de que ela participa
do jogo político e, por enquanto,
respeita suas regras legitima sua
presença na arena política francesa, de acordo com os especialistas.
Afinal, ela aceita a "democracia de
procedimentos", ou seja, as chamadas convenções do sistema,
como a representatividade dos
partidos e o sufrágio universal.
"Na França, os partidos extremistas -de direita ou de esquerda- continuarão tendo o direito
de existir e de participar da cena
política enquanto respeitarem o
quadro legal do país. Não há motivo ideológico-legal que os impeça", analisou Michel Wieviorka,
diretor do Centro de Análise e de
Intervenção Sociológicas (Paris).
A discussão não é recente no
país, pois teve início na década de
30, quando a democracia francesa
foi desafiada pelas ligas de extrema direita. Mais tarde, após a assinatura de um acordo de não-agressão entre a Alemanha nazista, de Adolf Hitler, e a URSS, de
Josef Stálin -o pacto Ribentrop-Molotov (1939)-, foi levantada a
questão do banimento do Partido
Comunista Francês (stalinista).
Também nos anos 60, quando
houve o surgimento de grupos de
extrema direita (Occident), e na
década de 70, quando ganharam
força movimentos de extrema esquerda, como a Liga Comunista
Revolucionária, o tema da interdição dos partidos extremistas foi
discutido em território francês.
Contudo nem mesmo em meados da década de 80 -com o fortalecimento da FN- a idéia foi levada adiante, já que, no sistema
ideológico-legal francês, qualquer
formação política que respeite os
limites impostos pelos "mecanismos nacionais de defesa da democracia liberal" tem o direito de
participar do jogo político.
"Tudo o que se refere aos direitos dos partidos não-democráticos depende da conjuntura, da
história de cada país. Não se trata
de nada absoluto, pois cada Estado estabelece seus próprios mecanismos de defesa da democracia.
No quadro francês, ainda faz sentido admitir a existência da FN",
analisou Eric Fassin, professor na
Escola Normal Superior (Paris).
Porém, na França, essas formações não podem defender abertamente idéias racistas, xenófobas
ou nazistas. Por outro lado, no
contexto histórico-legal dos EUA,
a liberdade de expressão é prioritária e garantida pela Primeira
Emenda à Constituição, o que autoriza esse tipo de discurso. Já na
Alemanha, os mecanismos de
proteção da democracia são ainda
mais rígidos do que na França.
"Em alguns Estados, o peso histórico é determinante. Na Alemanha, há o medo da volta do nazismo e de suas sequelas", declarou o
historiador Michel Vovelle. Assim, a Lei Fundamental da República Federal Alemã (1949) proíbe, entre outros pontos, a existência de partidos que preconizam
-direta ou indiretamente- a
destruição do sistema democrático e a discriminação racial.
Pode-se, portanto, afirmar que,
no quadro histórico-legal francês,
a participação da FN continuará
legítima contanto que ela saiba
manter uma segura distância formal do que é considerado ofensivo aos mecanismos de proteção
da democracia liberal.
Proibir a FN poderia surtir efeito deletério: solidificar sua posição na sociedade. "Seria perigoso
banir a FN. Ela é apoiada por uma
parcela significativa do eleitorado, que também tem direitos políticos. Isso poderia provocar grandes protestos -com mais de 5
milhões de simpatizantes da extrema direita-, o que seria nefasto para a democracia", afirmou
Dominique Reynié, do Instituto
de Estudos Políticos de Paris.
Texto Anterior: Eu voto em Le Pen: "Sem ele é o caos; estamos entre bárbaros" Próximo Texto: Jardim não pode ser entregue à serpente Índice
|