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COMENTÁRIO
Perigo: o materialismo ameaça nosso bem-estar
RICHARD TOMKINS
DO ""FINANCIAL TIMES"
Será que é ir longe demais afirmar que, até muito recentemente,
o motivo condutor da história humana sempre foi a miséria? É fácil
imaginar o passado como alguma
espécie de idílio bucólico, mas
apenas se ignorarmos o sofrimento perpétuo provocado pelas
guerras, as pestes e a fome. Entre
uma coisa e outra, você poderia
ter a esperança de não viver sob a
sombra excessiva do medo, das
superstições e da perseguição religiosa, mas não haveria maneira
de escapar daquilo que o economista John Maynard Keynes descreveu como o problema permanente da humanidade: a luta pela
subsistência.
Uma das conquistas mais espantosas da história econômica
recente é o fato de esse problema
aparentemente permanente ter
sido resolvido no mundo industrializado avançado. A maior parte das pessoas nos países desenvolvidos vive não num estado de
carência, mas de superabundância. As pessoas não se preocupam
mais em saber se poderão pôr comida na mesa dos filhos ou manter um teto sobre suas cabeças,
mas qual pacote de canais a cabo
devem assinar, onde passar suas
férias ou que grifes vestir.
Mas algumas pessoas não ficam
satisfeitas nunca. Apesar de estarem mais ricas, mais saudáveis e
em maior segurança do que nunca, e apesar de gozarem mais liberdades e oportunidades, continuam a se queixar: sobre os índices crescentes de depressão e suicídio, sobre a criminalidade, sobre o fato de os bons modos estarem caindo em desuso, sobre a
obesidade, os maus motoristas, o
abuso de drogas, a hipercompetitividade, o materialismo crescente e, sobretudo, sobre o spam.
O fato é que, no Ocidente, o aumento da produção econômica e
do consumo já deixou de ser
acompanhado por um aumento
no índice de felicidade das pessoas. E, à medida que a distância
entre as duas coisas aumenta, ela
chega perto de virar obsessão.
A Fundação Nova Economia, de
Londres, e o Instituto Austrália,
de Canberra, fizeram relatórios
sobre a busca da felicidade. Na semana passada a Royal Society, a
mais importante academia científica britânica, promoveu uma
conferência de dois dias sobre a
ciência do bem-estar. No mês
passado, a revista ""New Scientist"
dedicou uma série em duas partes
ao tema. E assim por diante.
Nível de exigência
As principais descobertas resultantes das pesquisas sobre felicidade podem ser resumidas em
poucas frases. Embora mais dinheiro seja garantia de um grande
aumento de felicidade quando se
é pobre, cada dólar a mais faz cada
vez menos diferença a partir do
momento em que as necessidades
básicas das pessoas foram satisfeitas. São muito mais importantes
coisas não materiais, tais como
um casamento feliz e passar tempo com as pessoas que se ama.
Mas o dinheiro e os bens materiais fazem diferença, sim, em um
ponto: as pessoas tendem a buscar status e, portanto, se julgam
comparando-se com os sinais visíveis do sucesso das outras.
Infelizmente, como observa o
relatório da Fundação Nova Economia, essa é uma competição
que nunca tem fim, porque o nível de exigências não pára de subir. Antigamente, possuir uma
casa era sinal de status; hoje, menos do que duas não serve.
Se as pessoas pudessem superar
sua preocupação com o status, ficaria claro qual é o caminho que
leva à felicidade: elas deveriam
trabalhar menos, aceitando receber menos, em troca de mais tempo para passar com seus familiares e amigos. Talvez você ache que
isso nunca vai acontecer. Mas, de
acordo com Clive Hamilton, autor do relatório do Instituto Austrália, nada menos do que 25%
dos britânicos na faixa dos 30 aos
59 anos fizeram exatamente isso
nos últimos dez anos, aceitando
voluntariamente ter seus ganhos
reduzidos para poderem melhorar sua qualidade de vida.
Nosso sistema econômico inteiro, com seus aumentos anuais de
PIB programados, é fundamentado no conceito de satisfazer o desejo por mais, e a publicidade
existe exclusivamente para ajudar
a gerar esse desejo. Mas o que
aconteceria se as pessoas se convencessem de que o desejo de
possuir mais, em lugar de aumentar sua felicidade, na verdade
constitui obstáculo a ela?
As pessoas sempre tiveram uma
atitude ambivalente em relação à
publicidade, temendo que ela as
ludibriasse, convencendo-as a
comprar coisas de que não precisam. Talvez isso explique um paradoxo: o de que, à medida que a
sociedade vem se tornando mais
liberal, as atitudes em relação à
publicidade tenham evoluído no
sentido oposto. Hoje não é mais
possível fazer publicidade de
qualquer produto que possa ser
vendido legalmente. As pessoas
estão exigindo que a publicidade
opere dentro dos parâmetros de
objetivos sociais, até mesmo morais. Às proibições da publicidade
de cigarros agora se seguem chamados pela imposição de limites à
publicidade de outros produtos
""indesejáveis", tais como bebidas
alcoólicas e fast food. E cresce o
clamor para que seja proibida a
publicidade voltada às crianças,
movido em boa parte pelo temor
de que elas estejam sofrendo lavagem cerebral, com o intuito de levá-las ao consumismo.
Partindo disso, será apenas um
passo curto defender a proibição
da publicidade voltada aos adultos, alegando que ela os faz infelizes. Isso nunca vai acontecer, é
claro; as pessoas sempre vão desejar bens materiais, de modo que a
publicidade sempre vai exercer
um papel necessário. Mas será
que é possível imaginar um dia
em que cada anúncio seja obrigatoriamente acompanhado de um
aviso do governo, algo como ""Perigo: -o materialismo pode prejudicar seu bem-estar"?
A propensão a adquirir sempre
mais é, afinal, muito semelhante
ao tabagismo: faz mal às pessoas,
cria dependência e é muito mais
fácil de ser abandonada se todos o
fizerem ao mesmo tempo. Assim,
o interesse da felicidade da maioria das pessoas seria mais bem
atendido se a política social fosse
dirigida no sentido de marginalizar as pessoas que buscam status,
transformando-as em párias, de
modo que os outros pudessem
começar a trabalhar e ganhar menos, tranquilos por saber que não
apenas seriam a maioria, como
estariam fazendo a coisa certa.
Tradução de Clara Allain
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