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ARTIGO
El Salvador luta contra a Aids; não conte ao papa
NICHOLAS KRISTOF
DO "NEW YORK TIMES"
O papa João Paulo 2º se escandalizaria caso visitasse o hospital
católico aqui, em Sonsonate, na
região sudoeste de El Salvador.
O Vaticano está cada vez mais
fora de contato com a realidade e
exerce influência -reacionária e
até mortífera, no mundo da
Aids- sobre as políticas de saúde
dos países em desenvolvimento.
Aqui em El Salvador, os líderes da
igreja ajudaram, em 1988, a proibir os abortos mesmo quando necessários para salvar a vida da
mulher e, ainda pior, ajudaram a
aprovar uma lei, que entrou em
vigor em 2002, exigindo que as camisinhas portem alertas de que
não protegem contra a Aids.
Em El Salvador, onde só 4% das
mulheres usam contraceptivos na
primeira vez que fazem sexo, essa
lei significa mais gente morrendo
de Aids. A realidade é que camisinhas não causam sexo, da mesma
forma que guarda-chuvas não
causam chuva.
Nos movimentos de base, a
igreja salvadorenha é uma organização vibrante e flexível, enormemente diferente do distante e desinformado Vaticano. No hospital católico de Sonsonate, médicos informam mulheres sobre
DIUs e pílulas anticoncepcionais
e especialmente sobre o uso de camisinhas como proteção contra a
Aids. O trabalho humanitário que
realizam é um lembrete de que a
Igreja Católica é muito maior que
o Vaticano: os padres e freiras locais muitas vezes ignoram os trogloditas de Roma e discretamente
fazem o que podem para salvar
seus paroquianos da Aids.
"O bispo fica em El Salvador,
nunca vem aqui", explica a doutora Martha Alica de Regalada. "Por
isso, nunca temos problemas."
O Vaticano vem-se opondo
consistentemente ao uso de camisinhas e à educação quanto ao sexo seguro, chegando a alegar, falsamente, que camisinhas não
protegem contra a Aids. Essa atitude se assemelha à da Igreja sob
o pontificado de Urbano 8º, que
decretou a prisão domiciliar de
Galileu, mas o presente caso terá
resultados muito mais mortíferos.
Mas eu tiro meu chapéu para a
Igreja Católica em um sentido
mais amplo, pois se esforça nos
"barrios" da América Latina e nos
cortiços e favelas da África e da
Ásia. A Catholic Relief Services,
uma das mais vigorosas organizações assistenciais em operação no
Terceiro Mundo, é exemplo de
humanitarismo dos mais nobres.
Nas bases, os padres aplicam a
doutrina católica com uma flexibilidade que deve enfurecer o papa. Em Chucita, uma aldeia desesperadamente pobre nas colinas
salvadorenhas, onde os camponeses vivem em barracos sem água
ou eletricidade, um professor explica como seus alunos de quinta
série aprendem a lidar com a
Aids.
"Uma assistente social mostra
como colocar uma camisinha
usando uma banana", conta o
professor, Eduardo Antonio Ascensio Mata. Os padres, afirma,
não têm objeções.
Na remota cidade de Coatepeque, na Guatemala, freiras dirigem uma clínica e um programa
de prevenção de Aids de primeira
classe, salvando vidas em larga escala. Trabalham com prostitutas e
estudantes e explicam de que maneira camisinhas podem ser usadas como proteção contra a Aids.
Mas e os ensinamentos do Vaticano?
"Certamente Deus não deseja
que matemos uns aos outros", explica Marlene Condon, que trabalha com pacientes de Aids. "É preciso fazer alguma coisa."
Em outras áreas de Coatepeque,
alguns padres conduzem reuniões onde jovens, preparando-se
para a crisma, recebem informações sobre a Aids e camisinhas.
O Vaticano indicou bispos linha
dura para eviscerar a teologia da
libertação e colocar as paróquias
na linha. Mas, ainda assim, as
conferências de bispos da França
e da Alemanha instaram que o
uso de camisinhas fosse permitido para combater a Aids, e o bispo
Kevin Dowling, da África do Sul,
está pressionando vigorosamente
para que a igreja mude sua política e ajude a salvar vidas.
Ainda neste mês, o Catholics for
a Free Choice e outras 20 organizações católicas conclamaram os
bispos a aceitar o uso de camisinhas como forma de combate à
Aids.
A ironia é que nenhuma outra
organização faz tanto para ajudar
as vítimas da Aids e seus órfãos
quanto a Igreja Católica. Cerca de
25% das operações de assistência
à Aids no mundo provêm de grupos ligados à igreja. Mas o Vaticano se opõe cegamente ao uso de
camisinhas mesmo no casamento, quando o marido ou a mulher
estiverem infectados com o HIV.
Um membro do Parlamento do
Quênia classificou a igreja como
"o maior obstáculo na luta contra
o HIV/Aids".
A esperança é que o Vaticano
aprenda com os padres e freiras
que estão nas trincheiras e combatem a doença tão heroicamente. Em Coatepeque, conversei
com o padre Mario Adolfo Domingues, que suspirou ao ser interrogado sobre a teologia da camisinha.
"Não recomendamos o uso de
camisinhas, mas não nos opomos
a ele, porque previne a Aids", disse, parecendo nervoso ao me ver
anotando suas palavras. "Não
existe contradição entre o cristianismo e um pedaço de borracha."
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