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ARTIGO
Guerra de Bush confunde esquerda e direita
PAUL BERMAN
DA ""DISSENT"
Um amigo meu se inclinou em
minha direção por cima da mesa
do bar e disse: ""Você falou que a
Guerra do Iraque é uma guerra
antifascista. Você chegou ao ponto de dizer que é uma guerra de
esquerda, uma guerra de libertação. Que jeito de falar! Mas pouca
gente da esquerda concordaria
com você".
""Mentira!", respondi. ""Tirando
X, Y e Z, cujos nomes esquerdistas
você já conhece bem até demais, o
que você acha de Adam Michnik,
na Polônia? E Vaclav Havel? Eles
são alguns dos heróis dos nossos
tempos. De qualquer jeito, quem
é que está lutando no Iraque neste
momento? A coalizão é liderada
por um direitista do Texas, o que é
uma pena; mas no segundo escalão da liderança está o premiê do
Reino Unido, que é socialista
-mais ou menos-, e, no terceiro, o presidente da Polônia, um
comunista! Ou ex-comunista, pelo menos. Um direitista texano e
dois europeus mais ou menos de
esquerda. De qualquer maneira,
essas categorias, esquerda e direita, estão caindo por terra. E quem
você vê como sendo o líder da esquerda mundial? Jacques Chirac?
Odeio lhe dizer isso, mas ele é
conservador."
Meu amigo insistiu. ""Mesmo
assim, a maioria das pessoas pensa diferente. Você percebe isso,
certo? E por que você acha que as
pessoas discordam de você?"
Era uma pergunta agressiva, e
eu respondi à altura.
""Por que as pessoas da esquerda
não enxergam a situação sob a
minha perspectiva? Exceto as que
enxergam, é claro. Vou lhe dar
seis razões. As pessoas da esquerda não conseguem enxergar a natureza antifascista da guerra porque..." e minha mão se ergueu,
pronta para dar seis socos sobre a
mesa, dando ênfase à força poderosa de meus argumentos.
""A esquerda não enxerga porque" -soco!- ""George W. Bush
é um político excepcionalmente
repulsivo, exceto para seus próprios seguidores, e a repulsa que
sentem cega as pessoas. E assim,
em sua cegueira, elas não estão
conseguindo identificar os contornos principais da realidade.
Elas olham para o Iraque e vêem o
sorrisinho complacente no rosto
de George W. Bush. Chegam a
sentir uma espécie de "schadenfreude", ou satisfação perversa,
diante dos erros e fracassos dele. É
um exemplo moderno daquilo
que antigamente era conhecido
como "consciência falsa"."
Soco na mesa! ""A esquerda não
enxerga porque um monte de
pessoas de outro modo inteligentes decidiu, a priori, que todos os
maiores problemas do mundo
têm sua origem nos Estados Unidos -mesmo quando são problemas que não vêm de lá. É uma
atitude que, 60 anos atrás, teria
impedido essas mesmas pessoas
de entender o que queriam os fascistas da Europa, também."
Soco na mesa! ""Outra razão é
que muitas pessoas supõem que
qualquer espécie de movimento
anticolonial deve ser admirável
ou, no mínimo, aceitável. Ou então elas pensam
que, no mínimo,
não devemos fazer mais do que
expressar uma repreensão leve,
mesmo no caso de
um movimento
que, como o partido Baath, foi fundado sob influência nazista. Por sinal, foi fundado
em 1943."
Soco na mesa!
""A esquerda não
enxerga porque
muita gente, num
esforço bem-intencionado para
respeitar as diferenças culturais,
concluiu que, por
razões que ninguém entende, os
árabes devem gostar de viver sob
ditaduras sanguinárias, ou então
não serão capazes por mais uns
500 anos, e que, portanto, os liberais árabes devem ser vistos como
sendo de alguma maneira pouco
autênticos. Ou seja, muita gente,
levada por seus próprios nobres
princípios de tolerância cultural,
acabou se atendo a atitudes que só
podem ser qualificadas como racistas em relação aos árabes.
""Antigamente, a esquerda era
universalista: pensava-se que o
mundo inteiro, algum dia ia querer viver de acordo com os mesmos valores fundamentais e que
todo o mundo deveria ser ajudado a fazer exatamente isso. Mas
não mais. Hoje em
dia, num espírito
de tolerância igualitária, as pessoas
pedem: "Democracia social para
os suecos!'; "tirania para os árabes!". E isso por
acaso é uma atitude de esquerda? E,
por falar nisso,
não se ouve a esquerda falar muito sobre os não-árabes em países
como o Iraque,
certo? Antigamente a esquerda
real era defensora
das populações
minoritárias, pessoas como os curdos. Não mais! A
esquerda, meu
amigo, abandonou os valores da
esquerda -tirando alguns poucos entre nós, é claro."
Soco na mesa! ""Mais uma razão:
muitas pessoas crêem honestamente que os problemas de Israel
com os palestinos representam algo mais do que uma simples disputa miserável em torno de fronteiras e reconhecimento -acham
que os problemas de Israel representam algo muito maior, um aspecto singularmente diabólico do
sionismo, algo que explica a raiva
e a humilhação sentidos por muçulmanos do Marrocos à Indonésia. Muitas pessoas sucumbiram
às fantasias anti-semitas sobre a
qualidade cósmica do crime judaico e não conseguem pensar em
outra coisa.
""Basta olhar para as discussões
que rolam mesmo
entre pessoas que
se consideram da
esquerda democrática, a esquerda
boa -um repisar
constante, obsessivo, sobre os pecados cometidos
por Israel, enquanto muito
pouco é dito sobre
os movimentos de
influência fascista
que provocaram
centenas de milhares ou até milhões de mortes
em outras partes
do mundo muçulmano. Se você parar para pensar
nisso, vai perceber que as distorções são muito grandes. Veja o caso de nossas grandes revistas liberais, de grande influência -publicam um artigo após outro sobre os crimes e as burrices cometidos por Israel, e até mesmo algumas declarações em favor de acabar com Israel, e, ao mesmo tempo, quase nada sobre o sofrimento dos árabes no resto do mundo.
E menos ainda é dito sobre os liberais árabes -nossos camaradas, que foram praticamente
abandonados à própria sorte. O
que você acha disso, meu amigo?
Existe um nome para isso, para
essa distorção sistemática. É uma
coisa que nós,
marxistas, na época em que éramos
marxistas, costumávamos chamar
de ideologia."
Soco na mesa!
""A esquerda não
enxerga porque,
de qualquer maneira, muitas pessoas são cegas
quando se trata do
anti-semitismo
presente em outras culturas, cegas propositalmente. Elas não se
atrevem a reconhecer até que
ponto as doutrinas de tipo nazista
sobre o caráter sobrenatural do mal
judaico influenciaram os movimentos políticos
de massa em grandes partes do
mundo. Ainda é 1943 numa parte
enorme do mundo, e as pessoas
não se dão conta disso, simplesmente não conseguem detectar a
natureza fascista de muitos movimentos de massa e partidos políticos de todo tipo. Especialmente
no mundo muçulmano."
Seis socos na mesa. Meu amigo
fez cara de espanto. Sua incredulidade me levou a continuar.
""Apesar disso", insisti, ""se as
pessoas de boa fé, como você,
abrissem seus olhos de esquerda
bem abertos, enxergariam que o
partido Baath é quase um movimento fascista clássico, e o movimento islâmico
radical, também,
só que de maneira
um tanto diferente. São duas variantes de um impulso único que,
por acaso, é o legado fascista e totalitário que a Europa deixou para
o mundo muçulmano moderno.
Se as pessoas como você despertassem, veriam
que a guerra contra os movimentos islâmicos radicais e os baathistas, no Afeganistão exatamente
como no Iraque, é
uma guerra contra o fascismo."
Fui ficando cada vez mais indignado.
""É uma tragédia que você não
enxergue isso! Tragédia para os
afegãos e os iraquianos, que precisam de mais ajuda do que estão
recebendo. Tragédia para os liberais legítimos em todo o mundo
muçulmano. Tragédia para os
soldados americanos, britânicos,
poloneses e todo o mundo que
tem ido ao Iraque, os voluntários
das ONGs e as forças estrangeiras
de ocupação, que são obrigadas a
lutar duro para combater niilistas
da pior espécie e que vêm recebendo pouquíssimo apoio ou
mesmo solidariedade moral das
pessoas que se descrevem como
antifascistas das partes mais ricas
e mais gordas do mundo.
""É uma tragédia para a esquerda -a esquerda mundial, esta esquerda nossa que, ao deixar de
exercer um papel importante no
antifascismo de nossos tempos,
está neste momento cometendo
um erro histórico gigantesco. E
não será pela primeira vez, meu
amigo! No entanto, se a esquerda
do mundo inteiro assumisse esta
luta específica como sua, toda a
natureza dos acontecimentos no
Iraque e em toda a região poderia
ser influenciada de maneira muito útil, e os muitos erros de Bush
poderiam ser corrigidos, e a luta
poderia avançar."
Meu amigo arregalou os olhos,
talvez por espanto, talvez por pena de mim. Ele falou: ""Será que as
Nações Unidas e o direito internacional não significam nada para
você? Você acha que é tudo bem
os Estados Unidos saírem por aí
fazendo o que bem entendem, ignorando o resto do mundo?"
""Sou totalmente a favor da
ONU e do direito internacional",
respondi. ""Sou defensor deles.
Ou, melhor dizendo, gostaria de
defendê-los. Seria melhor travar
uma guerra antifascista com um
apoio da ONU que fosse mais do
que algo dado a contragosto. Melhor politicamente, melhor em
termos militares. Melhor em termos dos precedentes que seriam
criados. Melhor para expressar os
princípios liberais em jogo. Se as
coisas fossem do jeito que gostaria, é assim que teríamos começado a fazer esta guerra. Mas o que
quero não vale muito. Fomos
obrigados a optar entre apoiar a
guerra ou nos opormos a ela
-apoiar a guerra em nome do
antifascismo ou nos opormos a
ela em nome de algum conceito
de lei internacional. Antifascismo
sem lei internacional, ou lei internacional sem antifascismo. Escolha lamentável -mas, infelizmente, somos obrigados a optar."
Meu amigo declarou: ""Sou a favor da ONU e da lei internacional,
e acho que você traiu a esquerda.
Virou um neoconservador!".
""Sou a favor da derrubada de tiranos", eu respondi. ""Desde
quando derrubar o fascismo virou forma de trair a esquerda?"
""Mas o Bush não é mais ou menos fascista? Diga a verdade!"
Dessa vez fui eu quem arregalou
os olhos. ""Você não faz a menor
idéia do que seja o fascismo", respondi. ""Sempre pensei que a
consciência aguda da opressão
extrema fosse a característica
mais marcante de um coração de
esquerda. Valas comuns, 300 mil
iraquianos desaparecidos, uma
população esmagada por 35 anos
de botas baathistas pisando sobre
suas caras -é isso que é fascismo!
E você acha que alguns contratos
corruptos dando vantagens ilegais aos amiguinhos de Bush na
Halliburton, algumas frases retrógradas tiradas da
Bíblia, os cortes ridículos nos impostos que Bush
decretou e os incentivos que ele
ofereceu aos super-ricos são a
mesma coisa? Que
não dá para distinguir tudo isso
do fascismo? O
pensamento de
esquerda deveria
encarnar a capacidade de avaliar o
quadro maior.
Quem virou traidor da esquerda é
você!"
Mas esse argumento não fez o
menor sentido para ele. Então nada
nos restou a fazer
a não ser bater um na cabeça do
outro com nossos respectivos copos.
Paul Berman é membro do conselho
editorial da revista "Dissent" e autor de
""Terror and Liberalism".
Tradução de Clara Allain
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