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ÁSIA
Transferência de tecnologia para o Irã, a Líbia e a Coréia do Norte pode abrir caminho para investigação de tráfico internacional
Caso paquistanês expõe necessidade de controle nuclear
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
O perigoso imbróglio nuclear
em que se envolveu o Paquistão é
um bom pretexto para que governos e a comunidade científica investiguem (e desmantelem) a rede internacional de traficantes de
componentes que viabiliza o uso
militar da energia atômica.
É o que disse à Folha Joseph Cirincione, diretor do projeto de
não-proliferação do Carnegie Endowment for International Peace
(EUA), um centro de estudos sobre causas e riscos de conflitos.
Na última quarta-feira, o pai da
bomba atômica do Paquistão, o
físico Abdul Qadeer Khan, fez um
pronunciamento, em Islamabad,
em que confessou ter transferido
tecnologia nuclear para o Irã, a
Coréia do Norte e a Líbia.
No dia seguinte, quem foi à televisão foi o ditador do Paquistão,
Pervez Musharraf. Disse que perdoava Khan e procurou dar o episódio por encerrado.
"É preciso que haja uma investigação irrestrita sobre o que foi
vendido e para quem. Precisamos
saber muito mais sobre a rede internacional do dr. Khan", disse
Cirincione. Ele deu particular importância ao fato de ser preciso
conhecer não apenas os destinatários de projetos e equipamentos
mas também o circuito de intermediários do tráfico.
O episódio é absolutamente inédito na história de quase 60 anos
do uso militar da energia atômica.
Ele expõe pela primeira vez aquilo
que o jornal britânico "Daily Telegraph" chamou, anteontem, de
"supermercado" clandestino de
projetos, enriquecimento de
combustível e equipamentos.
O Paquistão recebeu auxílio da
China, nos anos 80, para produzir
sua bomba. No jogo regional de
alianças, os dois países contrabalançavam o apóio da Rússia à Índia no conflito pela região da Caxemira. A Índia explodiu seu primeiro artefato nuclear em 1974.
Em circunstâncias normais,
Khan estaria arriscando a vida no
desfecho de um julgamento por
alta traição. Mas Musharraf não
tem como julgar alguém que, por
força de três guerras contra a Índia, virou um herói nacional.
Os EUA, empenhados justamente em impedir que Irã, Coréia
do Norte e Líbia tenham acesso à
bomba atômica, procurariam,
também em circunstâncias normais, pressionar o Paquistão a
obter de Khan e seus cúmplices os
detalhes sobre o que ele vendeu.
Mas uma pressão pública enfraqueceria Musharraf ou apressaria
sua queda ou eliminação física.
Ele foi, recentemente, alvo de dois
atentados. Poderia ser substituído
por extremistas islâmicos, que se
tornariam guardiães do arsenal
nuclear paquistanês, podendo dividi-lo com terroristas. O país detonou suas primeiras seis bombas
entre 28 e 30 de maio de 1998.
É provável que os EUA tentem,
de um modo bastante discreto,
arrancar as informações de Musharraf. Mas o governo americano
está de mãos atadas.
Se fizesse barulho, queimaria
também um aliado na caça a Osama bin Laden, provavelmente refugiado no Paquistão, e comprometeria mais ainda a difícil tarefa
de desmantelar a rede Al Qaeda.
Essa relativa imobilidade ditada
por razões de Estado abre espaço
para a ação de especialistas que
participam de grupos de estudos
ou pressão. O regime paquistanês
entrou, nesta semana, na mira de
uma espécie de mutirão internacional de cientistas e ONGs.
Alertas e informações detalhadas têm sido divulgados pela FAS
(Federação dos Cientistas Americanos), pela UCS (União de Cientistas Engajados), pelos ambientalistas do Friends of the Earth
(Amigos da Terra), todos nos
EUA, ou pelo Instituto de Estudos
de Defesa e Estratégia, de Cingapura, ou pelo Instituto de Estudos
de Defesa e Análises, da Índia.
Seu poder de intervenção é limitado. Mas eles podem ao menos
cobrar dos governos, de forma
tecnicamente correta, as medidas
tomadas para impedir que armas
atômicas entrem no jogo de dissuasão de conflitos regionais ou se
tornem instrumentos de pressão
de fundamentalistas islâmicos.
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