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ARTIGO
A BBC e o problema da verdade em jornalismo
JOHN LLOYD
DO ""FINANCIAL TIMES"
Pode o jornalismo dizer a verdade? Essa sempre foi uma de
suas metas declaradas. Há muitas
outras que ocupam uma parte
maior do tempo da mídia, entre
elas o entretenimento, o lucro e a
criação de celebridades. Mas dizer
a verdade deveria ser o princípio
básico que norteia o jornalismo.
É possível acreditar na verdade
jornalística depois de a BBC, um
serviço de rádio e televisão visto
como o mais objetivo do mundo,
ter sido acusada, na semana passada, de distorcer fatos? Será que a
emissora, condenada no relatório
Hutton, falhou por não ter dito a
verdade? Para jornalistas de todo
o mundo, a resposta a ambas essas perguntas é ""sim".
A verdade é um pico jornalístico
que poucos de nós escalamos com
freqüência. Poderíamos, é claro,
nos esforçar mais para isso.
Quando falamos da verdade, às
vezes apelamos para o ensaio de
John Stuart Mill ""Sobre a Liberdade", segundo o qual do choque de
opiniões surgirá a verdade. Mill
não viveu para ver como a televisão encara essa idéia. No choque
de opiniões que se trava nos estúdios de democracias ricas, políticos e jornalistas tentam falar mais
alto. Suas opiniões se chocam,
mas raramente o que emerge é a
verdade. O público é convidado a
avaliar não a questão que está sendo discutida, mas a atuação dos
participantes.
O segundo critério pelo qual o
jornalismo se pauta é a investigação, e, para isso, o texto sagrado é
""Todos os Homens do Presidente", o relato feito por Bob Woodward e Carl Bernstein sobre como
trouxeram à tona a corrupção no
coração da Presidência de Richard Nixon. A investigação resultou em medidas judiciais ou de
reparação e levou a reformas. Mas
histórias como essa podem ser sedutoras. São boas quando se segue o exemplo de Woodward e
Bernstein, que se deram a trabalho enorme. São más -ou, no caso da BBC, desastrosas- quando
uma parte pequena e possivelmente questionável de uma narrativa maior é interpretada erroneamente como revelação de podridão de um sistema inteiro.
Há um terceiro tipo de verdade
que pode ser buscada por meio da
mídia: pela explicação de contextos, utilizando as ferramentas racionais da investigação. Numa
base diária, esta é tão essencial
quanto a discussão e a investigação para manter os cidadãos bem
informados. Essa deve ser a razão
mais importante para manter
uma emissora como a BBC.
O choque de opiniões é necessário para subsidiar a opção democrática, e o processo de revirar pedras para trazer à
tona o que está debaixo delas também. A investigação e exposição
constituem a terceira base necessária para um
bom equilíbrio.
No entanto essa
terceira forma de
dizer a verdade
vem sendo vista
menos hoje do
que era no passado. A paixão por
explicar é sentida
por apenas alguns
poucos órgãos de
imprensa. As explicações praticamente não são
oferecidas pelos
canais de televisão
comerciais. A televisão pública é o
último reduto do
jornalismo objetivo, mas está em
perigo cada vez
maior.
A BBC, que no passado liderou
o mundo na área da TV explicativa, vem se afastando dessa direção, concentrando-se, em lugar
disse, no choque de opiniões em
estúdio. Com freqüência cada vez
maior ela vem buscando revirar
pedras -ou seja, sair em busca
de revelações espantosas, no caso
em pauta o contexto dentro do
qual o repórter Andrew Gilligan
fez sua acusação, hoje notória, de
que o governo mentiu com conhecimento de causa quando redigiu seu dossiê sobre o Iraque.
Gilligan tinha em mãos o começo de uma matéria: um fio que, se
fosse puxado com habilidade, poderia ter revelado muito sobre o
processo decisório britânico no
período que antecedeu a guerra
no Iraque. Mas esse começo não
foi explicado por meio do que,
mais tarde, descobrimos ser um
relato impreciso da idéia que uma
fonte parcialmente bem informada (David Kelly) fazia sobre o que
pode ter acontecido. Esse começo
só seria compreensível se fosse
acompanhado de uma explicação
completa do contexto. Isso levaria
tempo para preparar, mas atuaria
como uma espécie
de critério pelo
qual o público poderia se pautar.
Um jornalismo
desse tipo é o
oposto do jornalismo ""pró-governo". Ele assume a
responsabilidade
de tentar contar
uma verdade inteira. Significa ganhar uma compreensão independente do
mundo. A BBC é
uma das poucas
emissoras do
mundo capazes
para esse trabalho.
Ao fazê-lo, ela às
vezes concordará
com a visão das
autoridades e, em
outros momentos, exporá o que é
inconveniente a
elas. Se não o fizer,
a BBC estará sempre em falta com o
público, porque não estará fazendo o que os cidadãos que a financiam têm o direito de esperar.
Os líderes da BBC optaram pela
saída romana e se jogaram sobre
suas próprias espadas. Essa saída
pode agora estar aberta a um jornalismo que lance luz consistente
sobre nosso mundo. Ao tentar
chegar a isso, a BBC poderia voltar a ser um modelo.
John Lloyd edita a ""FT Magazine".
Tradução de Clara Allain
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