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Comparar americanos a Saddam é contestável
GERALD BAKER
DO "FINANCIAL TIMES"
A equivalência moral é, há muitos anos, o mais insidioso inimigo
intelectual do poderio americano.
A confiança que os americanos
sentem em seu país como sendo
algo objetivamente benigno para
toda a humanidade sempre distinguiu sua política externa daquela de todas as grandes potências que o antecederam.
Durante mais de meio século de
supremacia mundial americana,
essa reivindicação vem sendo solapada -às vezes falsamente, outras vezes com razão- por atos
hediondos que, à primeira vista,
parecem ser imorais. Alguns desses atos, como Hiroshima ou como o apoio dado a ditadores vis
durante a Guerra Fria, foram produtos de avaliações morais conscientes e calculadas segundo as
quais o fim desejável justificava o
meio abominável. Outros, como
My Lai, foram lapsos indefensáveis de comportamento humano
individual que macularam a honra de todo um país.
Desde que invadiram o Iraque,
um ano atrás, os EUA vêm enfrentando o sofisma sedutor da
equivalência moral. Na Alemanha, George W. Bush e seu aliado
Tony Blair são rotineiramente tachados por políticos e comentaristas de criminosos de guerra,
por não terem obtido a aprovação
da ONU antes de empreenderem
sua ação militar, e essa crítica é
proferida dentro de uma comparação implícita com o passado da
Alemanha. O fato de não terem sido encontradas armas de destruição em massa é visto como fruto
de uma mentira deslavada dos
EUA e do Reino Unido, comparável às alegações soviéticas de que
sua agressão descarada foi lançada para apoiar os assoberbados
húngaros ou afegãos. A morte de
alguns milhares de civis no Iraque
vem sendo citada pelos críticos
dos EUA, através da operação de
algum cálculo moral inexato, como ""prova" de que, para os iraquianos, Bush é moralmente indistinguível de Saddam Hussein.
A esse misto tóxico agora vem
somar-se o simbolismo grotesco
de Abu Ghraib. Mesmo na prosa
seca do oficialês do Pentágono, as
acusações do relatório sobre o sistema de prisões administrado pelo Exército são chocantes. Iraquianos foram sujeitos a abuso
sexual, tortura e morte.
E, o que é muito mais contundente ainda, todos nós já vimos as
imagens bizarras e dantescas de
corpos humanos nus empilhados
como carne de cavalo diante de
soldados americanos com as bocas abertas em sorrisos imbecis,
soldados esses cuja depravação é
tão difícil de compreender quanto
é abominável. Ou, então, a imagem dolorosa do prisioneiro encapuzado, atados a fios elétricos,
como um passarinho confuso encurralado por um predador.
Mas a afirmação, que agora virou comum no mundo árabe e até
mesmo em boa parte da Europa,
de que essas imagens constituem
a prova final de que a América é a
equivalente moral ao Iraque de
Saddam, precisa ser gentilmente
contestada. Saddam nunca foi
prestativo a ponto de prover ao
público fotos daquilo que seus
homens faziam em Abu Ghraib.
E há um tom de indignação
chocada nessas revelações, especialmente nos EUA, que me parece um pouco ingênuo. Presume-se que a tortura não seja algo raro
no Iraque e no Afeganistão. A
guerra é um trabalho sujo que
diariamente coloca homens e mulheres diante de escolhas terríveis
que a maioria de nós não precisa
fazer nenhuma vez na vida.
No filme ""Questão de Honra"
(1992), o coronel dos marines Nathan Jessup (Jack Nicholson),
acusado de maltratar um soldado,
se explica: ""Minha existência, embora seja grotesca e incompreensível a vocês, salva vidas. Vocês
não querem a verdade. Porque, lá
no fundo, em lugares que não são
assunto em festa, vocês querem
que eu esteja naquela parede, precisam de mim naquela parede".
Entretanto não basta simplesmente afirmar a diferença moral
entre a América de Bush e o Iraque de Saddam. Estamos diante
de um teste grave do caráter da
América. Será preciso empreender uma ação. Todos os responsáveis por esses crimes precisam ser
tratados com a força plena da Justiça militar, como aconteceu com
o fictício coronel Jessup -até o
mais alto escalão do comando militar. Se só os nanicos sofrerem
medidas disciplinares sérias, isso
não será o suficiente para lavar essa mancha. É porque a América
não é Saddam que ela precisa
mostrar que sabe lidar com quem
infringe seu código ético.
Não tenho dúvida de que, no final, os EUA serão aprovados nesse teste. Mas o que só pode estar
em dúvida muito mais séria neste
momento é se o país possui a habilidade de liderança e a competência pura e simples necessárias
para dar garantias aos iraquianos
e aos próprios americanos.
A marca do tratamento dado
pelo governo Bush à ocupação do
Iraque não tem sido a crueldade
desumana, mas a incompetência
abissal. Desde o momento em que
as forças americanas entraram
em Bagdá, um ano atrás, a ocupação vem se caracterizando por arrogância desmedida, julgamentos
equivocados, surdez política, parcimônia, inconsistência e cálculos
equivocados. Sua busca por um
acordo político tem sido tortuosa
e, inacreditavelmente, mesmo
nesta fase adiantada, improdutiva. A maneira como vem cuidando da segurança, desde a pilhagem de Bagdá até o impasse em
Fallujah, no mês passado, vem
sendo caótica e indecisa. Apesar
da retórica, a ocupação passa a
impressão de que lhe falta disposição ou conhecimentos.
Como disse Walter Russell
Meade, estudioso da política externa dotado de visão eternamente otimista, ""a América começou
no Iraque dispondo de uma larga
margem de erro. Desde então,
não parou de consumir essa margem". Em última análise, o que
vai solapar a liderança dos EUA
não é a falta de confiança em suas
boas intenções, mas a descrença
quanto a sua capacidade de colocá-las em prática.
Tradução de Clara Allain
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