|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O cartunista mais polêmico da contracultura americana diz à Folha que Bush quer dominar o mundo e que ninguém gosta de seu governo
O mundo segundo CRUMB
LUCIANA COELHO
DA REDAÇÃO
A voz calma e as frases bem articuladas mal fazem transparecer
que do outro lado da linha está o
responsável pelo traço sujo e pelas
formas grotescas (muitas delas,
efeito de drogas alucinógenas)
que definem um dos trabalhos
mais contundentes da cultura underground americana.
Mas alguns minutos de conversa com o cartunista Robert
Crumb são suficientes para perceber que toda a pulsão sexual, a
ojeriza à sociedade consumista e
as doses cavalares de cinismo e
misantropia que permeiam sua
obra seguem ali, borbulhando.
Aos 60 anos, 13 deles na França,
Crumb parece ainda não ter se encontrado ("não me sinto bem em
nenhum lugar"), fala com desprezo profundo sobre a cultura americana e, sobretudo, sente muito
medo do rumo político que os
EUA tomaram.
Nascido em 1943 em uma família de cinco irmãos da Filadélfia,
Crumb começou a desenhar muito cedo, muito pela insistência do
irmão mais velho, Charles. O
hobby se tornou ganha-pão em
1962, quando se tornou ilustrador
da American Greetings. Logo viriam os quadrinhos e uma profusão de personagens que marcariam a chamada contracultura
americana: Fritz the Cat, Mr. Natural, Angelfood, Devil Girl...
A obra, vasta, ganhou público
fiel, a admiração da crítica e compilações que a alçaram ao status
daquilo que Crumb mais despreza -o de produto cultural de sucesso. De sua casa no sul da França (ele se nega a revelar a cidade),
o cartunista falou à Folha por telefone. Tratou de política, drogas,
sucesso e, claro, mulheres.
Folha - Como está a vida na França? Já faz mais de dez anos que o sr.
se mudou, não?
Robert Crumb - Treze anos. Nós
viemos para cá em abril de 1991.
Minha mulher [Aline Kominsky]
é que estava mais animada, ela
queria tirar nossa filha dos EUA.
Folha - Por quê?
Crumb - Porque ela não estava
gostando do efeito da cultura
americana sobre a nossa filha.
Folha - O sr. vê o efeito da mudança sobre Sophie?
Crumb - Com certeza. Ela é uma
pessoa que não tem uma identidade nacional específica, nem totalmente francesa nem americana. Ela tem as duas coisas misturadas, o que a torna outra coisa.
Folha - Hoje é uma vantagem não
ter essa identidade americana?
Crumb - Sim. Eu sempre fui uma
pessoa alienada quanto a isso. Minha mulher também se sente mais
confortável na França.
Folha - E o sr.?
Crumb - Eu não me sinto bem
em nenhum lugar [risos]. Mas a
Sophie esteve recentemente nos
EUA e foi atrás de alguns amigos
de infância. Muitas das meninas
tiveram problemas sérios com
drogas, algumas passaram até por
programas de desintoxicação.
Folha - O sr. não parece ser a pessoa mais adequada para condenar
o uso de drogas...
Crumb - [Risos] É verdade... Mas
é que, aqui na França, ela usa haxixe, mas lá são drogas pesadas,
que aqui são mais difíceis de conseguir, como cocaína, crack. Essa
cultura não é tão disseminada na
França. Eu usei algumas drogas
quando era mais novo, usei LSD,
fumei maconha, essas coisas. Mas
cocaína, anfetamina, crack... Isso
faz tanto mal...
Folha - O sr. parece realmente feliz por ter criado sua filha longe dos
EUA. Além da questão das drogas,
há mais razões para isso?
Crumb - Nós moramos em uma
cidade muito pequena, e na França ainda há essa tradição familiar.
Nos EUA, as pessoas vivem cada
uma por si. Os filhos são mais largados do que aqui. É claro que isso também proporciona resultados interessantes, porque você
acaba tendo de se virar, criar. Os
EUA são um lugar muito interessante em termos criativos, porque
tudo é muito maluco lá. Há muito
mais adolescentes interessados
em desenvolver coisas criativas
do que na França, por exemplo.
Folha - E as mulheres francesas?
Crumb - Não é o tipo de mulher
de que eu gosto, elas são muito
pequenas, não têm coxa nem
bunda.
Folha - O sr. sente falta disso?
Crumb - Muita! Nunca imaginei,
mas é do que eu mais sinto falta
aqui: das mulheres americanas.
Folha - Não é inimaginável...
Crumb - Bom, eu tenho de ir para
Amsterdã se quiser ver o tipo de
mulher do qual gosto. Ah, já me
disseram para ir ao Brasil. Dizem
que a bunda da mulher brasileira
é a mais incrível no mundo. Mas,
voltando, há uma diferença básica
entre a cultura francesa e a americana: a França não é tão obcecada
por dinheiro. Eles sabem que há
outras coisas legais, nem sempre
compráveis.
Folha - Agora que Sophie tem 22
anos, o sr. pensa em voltar?
Crumb - Não, não mesmo.
Folha - Por causa do governo?
Crumb - Meus amigos contam
que só está piorando, que há cada
vez mais fascismo...
Folha - O sr. concorda?
Crumb - Bom, ninguém gosta do
governo americano. Ninguém.
Folha - Essa onda de antiamericanismo, para alguém que não só está fora do país como era um "outsider" dentro dele, era previsível?
Crumb - Não me surpreendeu.
Dava para ver que os EUA estavam ficando cada vez mais isolados e direitistas desde os anos [de
Ronald] Reagan [1981-1989]. O
[Bill] Clinton [1993-2001] tentou
pôr freio nisso, mas não completamente. Ele teve de passar boa
parte de seus mandatos se defendendo de acusações de andar por
aí com mulheres. Aí entrou o
Bush e as coisas ficaram fora de
controle. As ambições deles [Bush
e seus assessores] são terríveis. É a
dominação mundial.
Folha - O que o sr. acha do discurso de Bush, pontuado por referências ao Bem e ao Mal?
Crumb -Ele está apelando para o
mínimo denominador comum,
está apelando para o eleitor ignorante, pois já desistiu do eleitor inteligente. Está atrás dos fundamentalistas cristãos. A coalizão
cristã representa uns 15 milhões
de votos. Mas há esperança. Espero que ele perca, porque teremos
problemas se ele não perder.
Folha - O sr. acha que Bush vence?
Crumb -Ninguém pode dizer.
Temos um jornal de língua inglesa que circula aqui, o International Herald Tribune, onde uns caras pagaram um anúncio de página inteira pedindo o impeachment de Bush e Cheney, dizendo
que o Congresso deveria usar de
meios legais para expulsá-los.
Folha - Não seria fácil...
Crumb -Nada fácil, imagine, o
Congresso enfrentar o Executivo.
Folha - Eu soube que Mr. Natural
[o personagem mais famoso de
Crumb] passou um tempo no Afeganistão... Ele tem algum conselho
para o presidente Bush?
Crumb -[Risos] "Sr. Bush, vá se
sentar numa caverna numa montanha e passe uns dez anos sozinho pensando no que você fez."
Folha - Dez anos são suficientes?
Crumb - O Bush nem é o maior
problema, pois ele é basicamente
um fantoche. O [vice-presidente,
Dick] Cheney é um cara realmente mau, um personagem sinistro e
diabólico. E por trás de tudo isso
há uma série de "think tanks", essas instituições com esses caras
que ficam pensando em políticas,
esquemas, estratégias de dominação mundial... Eu li um livro incrível, chamado "The Grand Chessboard" [o grande tabuleiro de xadrez], desse cara, [Zbigniew]
Brzezinski, que esteve no gabinete
do Reagan, e expõe a estratégia de
dominação na qual essas instituições trabalham. Não é segredo,
mas é deprimente ler sobre isso. O
autor foca a Eurásia, diz que é a
chave para a dominação mundial.
Uma vez que ocorra [a dominação] na Ásia Central - Afeganistão, Uzbequistão, Cazaquistão,
esses países que têm muitos recursos naturais... Os EUA querem
ter certeza de que controlam essa
região. É essa a estratégia.
Folha - A Guerra do Iraque é um
passo para isso?
Crumb - Com certeza faz parte
dessa estratégia. Há linhas de comércio muito importantes lá, comércio de petróleo pelo Iraque,
pelo Irã, para a Rússia e a Ásia
Central. Muita gente acha que nós
precisamos do petróleo, que os
estoques de petróleo estão acabando e nós precisamos dominar
isso. Mas não é isso. É a dominação econômica que eles querem. É
uma estratégia cruel e errada,
penso eu, ao invés de trabalhar
para a cooperação mundial. Mas
gente como o presidente nem deve achar que isso é possível, ele
acha que os asiáticos e os russos
nem sabem fazer negócios, que se
os EUA não dominarem haverá
um caos mundial. Eles acham que
estão tirando o mundo do caos.
Folha - O sr. disse uma vez que tomou aversão pela cultura americana. Ainda se sente dessa forma?
Crumb - Mais do que nunca. A
cultura americana está pior do
que nunca, terrível. Tudo é tão
vendido, tão comercial... É extremamente raro vermos algo realmente autêntico. Para onde quer
que você olhe, está tudo esmagado por comerciais...
Folha - O que o sr. achou do modo
como o retrataram no filme "Anti-herói Americano"?
Crumb -Vi o filme em Nova
York, com minha mulher. Ela disse: "Se na vida real você fosse como aquele cara do filme, eu pediria o divórcio".
Folha - Mas o sr. gostou?
Crumb - É um filme bem feito.
Achei a representação de Harvey
Pekar e da mulher dele muito boa.
Folha - O trabalho de Pekar não é
muito divulgado fora dos EUA.
Crumb -Nem nos EUA. Mas uma
vez que um filme chegue à mídia
nacional, tudo fica muito louco...
Vi isso acontecer quando fizeram
o documentário sobre a minha vida. Fiquei muito mais conhecido,
as coisas mudaram para um nível
totalmente diferente. De repente,
você é um astro de cinema.
Folha - Que tal a sensação?
Crumb -É incrível, muito estranha. Você entra em um restaurante e as pessoas te reconhecem,
mas na verdade elas estão reconhecendo a imagem que viram na
tela. Elas acham que sabem tudo
sobre você. Essa coisa estúpida e
vazia de ser uma celebridade da
mídia é muito idiota. Não tem nada a ver com qualquer mérito pessoal que você possa ter. É só o fato
de você estar na tela, mesmo sendo um completo babaca.
Folha - Hoje essa indústria de celebridades anda produzindo mais
do que nunca. Qual a razão?
Crumb -É assustador. Você acaba sendo obrigado a desenvolver
uma defesa crítica para não se tornar uma vítima. É uma coisa desgraçadamente poderosa, que manipula a nossa consciência de formas que nem sequer percebemos.
É um fenômeno que existe há
poucas gerações. E está piorando.
Texto Anterior: Casal sai da pobreza em Pequim Próximo Texto: Bush Índice
|