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"Nunca aprendi a viver", afirma pensador
JEAN BIRNBAUM
DO "LE MONDE"
Aos 74 anos, Jacques Derrida, filósofo de renome mundial, segue
seu caminho de pensamento com
uma singular intensidade, enquanto luta contra a doença. Em
sua casa em Ris-Orangis, na região parisiense, ele evoca para "Le
Monde" sua obra, seu itinerário e
seu rastro.
Pergunta - Desde o verão de 2003
sua presença nunca foi tão manifesta. O senhor não apenas assinou
várias obras novas, como também
correu o mundo para participar de
diversos colóquios internacionais
organizados em torno de seu trabalho -de Londres a Coimbra,
passando por Paris e, ultimamente, o Rio de Janeiro. Também lhe
dedicaram um segundo filme (Derrida, de Amy Kofman e Kirby Dick,
depois do muito belo D'ailleurs
Derrida, de Safaa Fathy em 2000),
assim como várias edições especiais de revistas. É muita coisa para
um ano só, no entanto o senhor não
esconde que está...
Derrida - ... pode dizer, perigosamente doente, é verdade, e passando por um tratamento perigoso. Mas deixemos isso de lado,
por favor, não estamos aqui para
um boletim de saúde -público
ou secreto...
Está bem. Nesta entrevista, vamos sobretudo voltar a "Espectros
de Marx". Obra crucial, livro-etapa,
inteiramente dedicado à questão
de uma justiça futura, e que começa com essa
exortação enigmática: "Alguém, você ou
eu, se adianta e
diz: eu gostaria
de aprender a
viver finalmente". Mais de dez
anos depois,
onde está o sr.
hoje, quanto a
esse desejo de
"saber viver"?
Derrida - Trata-se principalmente de uma
questão de uma "nova internacional", subtítulo e motivo central do
livro. Além do "cosmopolitismo",
além do "cidadão do mundo" como o de um novo Estado-nação
mundial, esse livro antecipa todas
as urgências "altermundialistas"
nas quais eu creio e que aparecem
melhor hoje. O que eu chamava
então de uma "nova internacional" nos exigiria, dizia eu em 1993,
um grande número de mutações
no direito internacional e nas organizações que regem a ordem do
mundo (FMI, Organização Mundial do Comércio, G8 e principalmente a ONU, da qual seria necessário modificar pelo menos a
Carta, a composição e o local de
residência -o mais longe possível de Nova York...).
Quanto à fórmula que você citou ("aprender a viver finalmente"), ela me ocorreu quando terminei o livro. De início ela joga,
mas seriamente, com seu sentido
comum. Aprender a viver é amadurecer, educar também. Chamar
alguém para lhe dizer "vou ensiná-lo a viver" significa, às vezes
em tom de ameaça, vou formá-lo,
quer dizer, amestrá-lo. Depois, e o
equívoco desse jogo me interessa
sobretudo, esse suspiro também
se abre a uma interrogação mais
difícil: viver, isso pode ser ensinado? Aprendido? Podemos aprender, por disciplina ou por aprendizado, por experiência ou experimentação, a aceitar, ou melhor,
a afirmar a vida? Ao longo de todo
o livro ecoa essa inquietação da
herança e da morte. Ela também
atormenta os pais e seus filhos:
quando você se tornará responsável? Quando finalmente vai responder por sua vida e seu nome?
Então, bom, para responder
sem mais desvios a sua pergunta,
não, nunca aprendi a viver. De
modo nenhum! Aprender a viver,
isso deveria significar aprender a
morrer, a levar em conta, para
aceitá-la, a mortalidade absoluta
(sem salvação,
nem ressurreição, nem redenção)
-nem para si
mesmo nem
para o outro.
Desde Platão, é
a velha injunção filosófica:
filosofar é
aprender a
morrer.
Acredito nessa verdade sem
me render a
ela. Cada vez
menos. Não aprendi a aceitá-la, a
morte. Somos todos sobreviventes em sursis (e, do ponto de vista
geopolítico de "Espectros de
Marx", a insistência vai sobretudo, em um mundo mais desigual
que nunca, para os milhares de seres vivos -humanos ou não- a
quem são recusados não só os
"direitos do homem" elementares, que datam de dois séculos e
que são enriquecidos incessantemente, mas em primeiro lugar o
direito a uma vida digna de ser vivida). Mas continuo ineducável
quanto à sabedoria do saber morrer. Ainda não aprendi ou não adquiri nada sobre esse assunto. O
tempo do sursis encolhe de modo
acelerado.
Não somente
porque eu sou,
juntamente
com outros,
herdeiro de
tantas coisas,
boas ou terríveis: com freqüência crescente, a maioria dos pensadores aos quais
eu estive associado estão
mortos, sou
tratado como
sobrevivente: o
último representante de uma "geração", aquela, de modo geral,
dos anos 60; o que, sem ser rigorosamente verdade, não me inspira
somente objeções mas também
sentimentos de revolta um pouco
melancólicos. Como, além disso,
alguns problemas de saúde se tornam prementes, a questão da sobrevivência ou do sursis que sempre me obcecou, literalmente, a
cada instante de minha vida, de
maneira concreta e inegável, hoje
assume outras cores.
Sempre me interessei por essa
temática da sobrevivência, cujo
sentido não se acrescenta ao viver
e ao morrer. Ela é original: a vida é
sobrevida. Sobreviver no sentido
corrente quer dizer continuar vivendo, mas
também viver
após a morte.
A propósito da
tradução, Walter Benjamin
salienta a distinção entre
"überleben",
de um lado, sobreviver à
morte, como
um livro pode
sobreviver à
morte do autor
ou uma criança à morte de
seus pais, e, de outro lado, "fortleben", continuar vivendo. Todos
os conceitos que me ajudaram a
trabalhar, sobretudo o do vestígio
ou do espectral, estavam ligados
ao "sobreviver" como dimensão
estrutural. Ela não deriva nem do
viver nem do morrer. Não mais
do que o que chamo de "luto original". Este não espera a morte dita "efetiva".
Pergunta - O senhor utilizou a palavra "geração". Uma noção de uso
delicado, que ocorre com freqüência sob sua pluma: como designar
aquilo que, em seu nome, se transmite de uma geração?
Derrida - Sirvo-me dessa palavra
aqui de maneira um pouco imprecisa. Podemos ser o contemporâneo "anacrônico" de uma
"geração" passada ou futura. Ser
fiel aos que são associados a minha "geração", tornar-se o guardião de uma herança diferenciada, mas comum, quer dizer duas
coisas: primeiro, ater-se eventualmente contra tudo e contra todos,
a exigências compartilhadas, de
Lacan a Althusser, passando por
Levinas, Foucault, Barthes, Deleuze, Blanchot, Lyotard, Sarah
Kofman, etc.; sem citar tantos
pensadores escritores, poetas, filósofos ou psicanalista felizmente
vivos, dos quais também herdo,
outros sem dúvida no estrangeiro, mais numerosos e às vezes ainda mais próximos.
Eu designo assim, por metonímia, um etos de escrita e de pensamento intransigente ou mesmo
incorruptível, sem concessão
nem sequer à filosofia e que não se
deixa assustar por aquilo que a
opinião pública, a mídia ou o fantasma de um leitorado intimidativo poderiam nos obrigar a simplificar ou a recusar. Daí o gosto severo pelo refinamento, o paradoxo, a contradição insolúvel.
Essa predileção também é uma
exigência. Ela alia não somente
aqueles e aquelas que citei um
pouco arbitrariamente, quer dizer, injustamente, mas todo o
meio que os sustentava. Tratava-se de uma espécie de época provisoriamente terminada, e não simplesmente dessa ou daquela pessoa. É preciso salvar isso, ou fazê-lo renascer, portanto, a qualquer
preço. E a responsabilidade hoje é
urgente: ela pede uma guerra inflexível à "doxa", àqueles que hoje
chamamos de "intelectuais da mídia", a esse discurso geral formatado pelos poderes da mídia, ela
mesma entre as mãos de lobbies
políticos e econômicos, muitas
vezes editoriais e acadêmicos
também. Sempre europeus e
mundiais, é claro. Resistência não
significa que devemos evitar a mídia. É preciso, quando possível,
desenvolvê-la e ajudá-la a se diversificar, lembrar-lhe dessa própria responsabilidade.
A íntegra desta entrevista foi publicada no "Le Monde" em 18/08/2004. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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