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Brasileiras rejuvenescem religião
DA REDAÇÃO
A temperatura se aproxima dos
30C, o sol está no meio do céu e o
excesso de camelôs no largo da
Concórdia torna o local quase intransitável. Mas nem o calor nem
o emaranhado de gente que se
apinha em frente às banquinhas
inibe Saajidah Ahmed, 21, e Aisha
Muhammed Ali, 31, de envergarem orgulhosas suas longuíssimas e larguíssimas roupas pretas,
véus sobre a cabeça, apenas rosto
e mãos de fora.
O que faz essas mulheres jovens,
brasileiras de nascimento e ascendência, adotarem nomes islâmicos e se vestirem em São Paulo como se estivessem na Arábia Saudita é a crença de que aquela é a
melhor forma de agradar a Deus e
cumprir sua obrigação religiosa.
As roupas, que causam estranheza nas movimentadas ruas do
Pari, são para os muçulmanos as
vestes tradicionais -embora em
desuso entre a maioria, em Estados islâmicos como o Irã e a Arábia Saudita são praticamente o
"uniforme" feminino.
Talvez venha daí a relação traçada no Ocidente com a submissão
feminina. O fato é que, em plena
São Paulo, a escolha de Aisha e
Saajidah não tem nada a ver com
submissão ao pai ou ao marido.
"É maravilhoso poder andar
por aí sem que os homens fiquem
olhando para você", diz Aisha,
que, em agosto, vai para os Emirados Árabes Unidos para se casar.
O marido? "Ainda não escolhi.
Recebi várias propostas", sorri.
Saajidah, que é casada com um
muçulmano e não está trabalhando (mas pretende voltar a fazê-lo
em breve), diz usar a roupa tradicional em tempo integral (exceto
em casa) para se preservar. Antes,
ela usava apenas o véu, mas, mesmo assim, se sentia incomodada
por atrair olhares masculinos.
"Quando comecei a usar as roupas mais tradicionais, meu marido ficou preocupado. Dizia que
todo mundo ia pensar que era ele
quem obrigava", diz, rindo.
As vestes das duas são feitas pela
irmã de Aisha a partir de modelos
trazidos por ela dos Emirados
Árabes Unidos. Apesar dos benefícios apregoados e de as duas jurarem que os trajes não são quentes, a opção pela indumentária
tradicional não é comum entre as
muçulmanas brasileiras.
Na aula dada para convertidas
aos sábado na mesquita do Pari,
por exemplo, é muito mais fácil
achar véus coloridos, blusas estampadas e até uma ou outra calça jeans um pouco mais justa. Todas as alunas adotaram o recato
recomendado pela religião, mas
nem por isso a vaidade foi deixada de lado. Muitas
estão impecavelmente maquiadas,
e a variedade de
véus mostra que a
peça também ganhou versões na
"moda".
Ali também fica
claro o que dissera
à Folha, dias antes, a historiadora
de família muçulmana Samira Osman: em solo brasileiro, não é possível manter a ortodoxia. "Eu não
diria que há hoje
aqui um muçulmano 100%", afirmara ela, que escreveu sua tese de
mestrado sobre a
imigração árabe para o Brasil.
Muitos, segundo Samira, abandonam o país a fim de resgatar o islamismo puro.
As pequenas adaptações que o
islã sofreu no país, no entanto,
não parecem ter afastado suas seguidoras. Na aula na mesquita do
Pari, são pouco mais de 20 alunas.
Há outros horários e outras mesquitas, o que indica que a religião
vem ganhando várias adeptas nos
últimos anos.
O último censo do IBGE, de
2000, diz que, no Brasil, há pouco
mais de 27 mil muçulmanos (não
há registro anterior). O xeque Ali
Abdouni, da Assembléia Mundial
da Juventude Islâmica no Brasil,
diz que são cerca de 1,5 milhão.
Das mulheres presentes à aula, a
maioria se converteu há relativamente pouco tempo. Um dos motivos da "onda" é a maior divulgação na mídia nos últimos anos
-ainda que por vias tortas, como
a novela "O Clone", de 2001, ou as
reportagens feitas após os ataques
de 11 de setembro de 2001, executados por terroristas islâmicos.
O outro, um paradoxo em relação ao estereótipo de religião fechada para o mundo que o islã ganhou por causa dos regimes autoritários vigentes em parte dos países que o adotam,
é a internet.
Saajidah se converteu há cerca de
15 meses, mas, antes de chegar à
mesquita, passou
dois anos estudando o islã pela
internet. A descoberta veio por um
programa de músicas árabes ao fim
do qual era recitado um trecho do
Alcorão, o livro
sagrado do islã.
Ao se ver chorando mesmo sem
entender os versos, decidiu estudá-los.
Antes, ela -que
nasceu em uma
família que não seguia nenhuma
crença- fora atéia, estudara siquismo e hinduísmo e fora iniciada no budismo. Seu marido, Abdullah, se converteu na mesma
época -os dois namoravam desde que ela tinha 15 anos, mas, na
ocasião, estavam separados.
Já Aisha, que, antes da conversão, era comissária de bordo e freqüentava uma igreja evangélica,
se interessou numa sala de bate-papo. "Estava em um chat árabe
em inglês quando uma pessoa me
perguntou se eu queria conhecer
o Alcorão." Ela topou, e ambos
passaram, via computador, quatro meses fazendo um estudo
comparativo com a Bíblia. Depois, seus interlocutores lhe presentearam com uma passagem e
sete meses nos Emirados Árabes
Unidos, onde se converteu.
Aqui, as mulheres muçulmanas
também usam a internet para divulgar suas opiniões. Amirah
Nossaes, 25, convertida há cinco
meses, mantém um blog no qual
defende o direito de usar o véu.
Em "A Voz do Islã na Internet",
ela também lamenta o preconceito que vê contra sua religião no
Brasil. Funcionária de um escritório de advocacia, trabalha sem
véu, mas o veste imediatamente
ao fim do expediente. "No ônibus,
ninguém senta do meu lado."
Sua colega Maimunah, 38, diz
que já foi chamada na rua de "noiva de Bin Laden" e de "mulher de
Saddam Hussein". A situação varia com o noticiário. "Após o 11 de
Setembro, eu não podia sair de
véu. Já na época da Guerra do Iraque, a coisa melhorou."
Maimunah e Amirah contam
sua história à reportagem e a Maria Mesquita, que freqüenta a
mesquita Brasil desde julho de
2003, mas ainda não se converteu.
Há sete anos no islã, Maimunah,
divorciada duas vezes e mãe de
dois rapazes, é a mais cética quanto à propagação do religião no
Brasil. "Aqui é tudo bagunçado.
Fica mais difícil conservar a pureza da religião", diz ela. "Até os
muçulmanos árabes que vêm para cá já saem dando a mão para
nos cumprimentar." Ela elogia o
recato de Maria e censura as mulheres que vão à mesquita "só para caçar homem".
Quando o assunto é os direitos
femininos, todas são unânimes
em dizer que o islã é justo. "A mulher é muito mais privilegiada do
que o homem, tem mais regalias",
diz Amirah. "Já o homem tem
mais obrigações", continua, referindo-se aos deveres financeiros.
Aisha, que diz que só aceitará
um marido que a deixe trabalhar,
pensa que as diferenças -biológicas, sobretudo- têm de ser respeitadas. "Se fosse totalmente
igual, aí é que seria injusto."
(LC)
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