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GUERRA AO TERROR
Para o ugandense Mamdani, projeto contra a URSS estimulou terroristas e ensejou o surgimento da Al Qaeda
Especialista liga Reagan ao terror atual
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
A rede terrorista que o governo
de George W. Bush busca destruir
é a conseqüência direta da "rede
de libertadores" criada pela administração do presidente Ronald
Reagan (1981-89) para combater a
invasão soviética do Afeganistão
(1979-89). Financiada pelos EUA,
essa rede possibilitou ao saudita
Osama bin Laden montar e treinar a Al Qaeda.
A afirmação é do ugandense
Mahmood Mamdani, professor
de administração pública na Universidade Columbia (EUA), diretor de seu Instituto de Estudos
Africanos e autor de, entre inúmeros outros livros, "Good Muslim, Bad Muslim: America, the
Cold War and the Origins of Terror" (bom muçulmano, mau muçulmano: América, a Guerra Fria
e as origens do terror).
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por e-mail, à Folha.
Folha - Analistas ligam o aumento do terrorismo a uma corrente da
cultura islâmica e às transformações pós-Guerra Fria. O sr. aponta
outras causas, não é?
Mahmood Mamdani - Meu argumento se baseia numa análise histórica do final da Guerra Fria. Depois da derrota americana no
Vietnã, passou a existir uma forte
oposição a intervenções internacionais dos EUA. A resposta de
[Henry] Kissinger [ex-secretário
de Estado dos EUA, 1973-77] ao
novo contexto internacional foi
recorrer à guerra por procuração.
Inicialmente, isso ficou evidente
no mesmo ano em que a Guerra
do Vietnã chegou ao fim, 1975.
Trata-se do ano em que o poder
colonial português entrou em colapso. E o centro de gravidade da
Guerra Fria se moveu para a África meridional. Incapaz de intervir
diretamente, a América procurou
grupos que pudessem fazê-lo em
seu lugar. Na transição que levou
à independência de Angola, Kissinger deu uma procuração informal à África do Sul. Mas a intervenção ficou desacreditada quando a notícia se tornou pública.
Essa estratégia ganhou, posteriormente, valor ideológico, tornando-se um imperativo religioso
contra o "império do mal"
[URSS] para o governo Reagan.
Se observarmos sua política externa, veremos que Reagan encorajou e apoiou, na Guerra Fria, redes e movimentos terroristas não-estatais da África meridional à
América Central e à Ásia central.
Essa história teve seu ápice com
o aparecimento de redes terroristas islâmicas ligadas à guerra santa afegã contra os soviéticos.
O sr. poderia dar mais exemplos
de guerras por procuração financiadas pelos EUA?
Mamdani - O governo Reagan
chamou sua aliança com a África
do Sul do apartheid de "engajamento construtivo". Tratava-se
de um guarda-chuva político sob
o qual o governo segregacionista
da África do Sul criou e sustentou
o primeiro movimento genuinamente terrorista da África, que
atacava sobretudo alvos civis com
o objetivo de espalhar o medo. Esse movimento puramente terrorista se chamava Renamo [Resistência Nacional de Moçambique].
A responsabilidade dos EUA
pelo desenvolvimento da Renamo foi indireta: sem a cobertura
política providenciada pelo governo Reagan, teria sido impensável que a África do Sul do apartheid apoiasse abertamente um
movimento terrorista num outro
país africano. Ao mesmo tempo, a
América de Reagan estava envolvida na criação de um movimento
terrorista na Nicarágua.
O elo entre ele e os chamados
"Contras" da Nicarágua era uma
reprodução do existente entre o
governo segregacionista da África
do Sul e a Renamo. E os métodos
de ambos eram parecidos.
O terceiro e mais importante caso de guerra por procuração ocorreu por conta da criação de uma
guerra santa internacional contra
a invasão soviética do Afeganistão. Reagan não estava preocupado com o nacionalismo afegão, no
entanto procurava abertamente
extremistas islâmicos internacionais que estivessem interessados
em travar a guerra até seu final,
não concordassem com a realização de negociações e quisessem só
"sangrar os brancos soviéticos".
Indubitavelmente, a rede de terror que Bush busca identificar e
destruir hoje é exatamente a conseqüência direta da "rede de libertadores" financiada pelo governo
Reagan na década de 80.
Folha - Alguns especialistas dizem que, deixando de lado as razões religiosas do terror, o sr. não
detecta a causa de alguns conflitos. Qual é sua reação à crítica?
Mamdani - Não negligencio a
importância da cultura nem a da
religião. Só sou contrário à idéia
de que o terrorismo político é necessariamente fruto de certas tendências culturais. Trata-se de algo
bastante conveniente porque proporciona a seus defensores a possibilidade de ignorar as relações e
o momento histórico dos quais o
terrorismo é, sem dúvida, fruto.
Em meu livro, mostro que uma
tendência que põe a violência no
centro da ação política surgiu no
islã político com os escritos de
[Mawlana Sayyid Abul Ala al]
Mawdudi, publicados no Paquistão, na década de 60. Contudo essa tendência era ideológica. Como
base de uma organização política,
era marginal. Mesmo ideologicamente, não houve no islã político
um crescimento linear dos debates sobre o tema.
Ora, como uma tendência que
era marginal pôde ocupar o centro da cena apenas duas décadas
depois? Como explicar uma mudança radical de estratégia, já que
a tentativa de criar um movimento maciço de muçulmanos comuns para mudar o mundo foi
deixada para trás em benefício da
criação de pequenos grupos conspiradores que usavam a linguagem da religião para evitar uma
contestação popular a seu objetivo de tomar o poder?
Não encontrei a resposta na tendência terrorista do islã político,
mas em sua aliança com uma administração americana que também revestia seu vocabulário político de um tom religioso.
Folha - Há, portanto, um aspecto
violento em parte da cultura islâmica? Isso explica o wahabismo?
Mamdani - Acabei de explicar o
desenvolvimento histórico desse
aspecto. Uma explicação mais
ampla exporia como essa tendência se ancorou ideologicamente
no desenvolvimento unidimensional da noção de jihad.
Inicialmente, ao esvaziar o jihad
mais amplo, a luta contra a própria fraqueza, e aumentar o valor
do jihad mais estreito, a luta contra a opressão interna -islâmica
ou não. E, em seguida, ao limitar o
jihad a um esforço que deve ser
empreendido por um grupo pequeno e conspirador.
Todavia seria um erro ligar a
tendência terrorista existente no
islã político ao wahabismo ou a
qualquer outra perspectiva religiosa. O wahabismo é um movimento cultural e religioso puritano, não uma ideologia de ação política. Discordo daqueles que confundem movimentos culturais ou
contraculturais com o terrorismo.
O fundamentalismo religioso
-cristão, judaico, hindu, budista
ou muçulmano- não abre caminho necessariamente para o terror político. É lógico, no entanto,
que não nego que o mundo tenha
visto a aparição de movimentos
terroristas ou genocidas que fazem uso da linguagem hipócrita
do fundamentalismo religioso.
Por outro lado, é claro que, quando a linguagem política dá alento
a um projeto político e molda sua
ação, ela deve ser analisada como
parte de um projeto político.
Folha - À luz de sua tese, qual foi
o papel dos EUA na ascensão de
Osama bin Laden e na de seu braço
direito, Ayman al Zawahiri?
Mamdani - Eles não foram criados pelo EUA, porém foi o projeto
americano no Afeganistão durante a invasão soviética que fez deles
líderes de uma rede terrorista. Foi
esse projeto dos EUA que recrutou, treinou e organizou essa rede
de terror, que deu a seus membros uma noção de consciência de
grupo e a seus líderes a idéia de
que sua missão era mudar o mundo por meio do terrorismo.
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