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ARTIGO
EUA adotam hipocrisia como método
Leia a seguir a continuação do
artigo de Paul Krugman.
Outra explicação do sucesso da
dinastia Bush, conforme Phillips,
é seu desempenho irretocável em
ocultar suas verdadeiras intenções: "Se a hipocrisia é o tributo
que o vício paga à virtude, o conservadorismo com compaixão é a
política que a hipocrisia emprega
para ocultar seus vícios econômicos. Embora tenha demorado três
gerações para ser adotada, essa
adesão retórica dos Bushes se vem
revelando cada vez menos como
uma atitude compensatória a ser
adotada pelas classes elevadas e
cada vez mais como falsificação
pura e simples: dizer uma coisa e
fazer o oposto".
O novo livro de Ron Suskind,
"The Price of Loyalty" (o preço da
lealdade), por sua vez, oferece um
retrato devastador dos métodos
políticos de Bush e se encaixa perfeitamente à análise de Phillips sobre os motivos do presidente. A
principal virtude do livro, que se
baseia parcialmente nas revelações de Paul O'Neill, ex-secretário
do Tesouro de Bush, é o que ele
tem a dizer sobre os valores e o
modo de operação do governo.
Comecemos pelo princípio
-uma discussão de política econômica em novembro de 2002,
pouco antes da demissão de
O'Neill. Lembrem-se de que 2002
foi o ano dos escândalos em grandes empresas; por um breve período, as revelações de trapaças
na Enron, na WorldCom e em outros pilares da economia pareciam destinadas a dominar o cenário na corrida para as eleições
de meio de mandato. O governo
preferiu rufar os tambores da
guerra e abafar a questão.
Ainda assim, os funcionários
continuavam preocupados com a
lentidão da economia. Mas qual
era a causa dessa lentidão? O presidente, de acordo com o secretário do Tesouro, tinha uma resposta simples: "Poder demais para a
SEC [órgão que fiscaliza o mercado financeiro nos EUA]". Ou seja,
aqueles malvados fiscais, em sua
tentativa de reprimir os delitos
das grandes empresas, estavam
deixando os executivos e os investidores nervosos e causavam depressão na economia.
Eis como Suskind descreve o
momento: "O'Neill não conseguia acreditar no que estava ouvindo -poder demais para a
SEC? Não admira que a Casa
Branca tenha retirado seu apoio a
punições severas para os executivos trapaceiros e entregado a liderança do debate sobre governança corporativa ao Congresso".
Kevin Phillips seria capaz de explicar o caso, evidentemente:
Bush, cuja carreira empresarial
envolveu alguns "momentos
Enron", estava revelando sua
simpatia instintiva, hereditária,
de fato, pelos líderes empresariais
e sua antipatia por qualquer instituição que tente lhes impor um
mínimo de responsabilidade.
Além do relato desse espantoso
rompante de Bush, o que a descrição do encontro por Suskind nos
revela é que, entre eles, os principais funcionários do governo admitem aquilo que negam veementemente ao responder aos
críticos externos.
Sabiam que estavam sendo irresponsáveis em termos fiscais,
mas, em público, as declarações
do governo eram exatamente o
oposto. Bush talvez se preocupasse, em particular, com a possibilidade de que seu plano tributário
favorecesse demais os ricos, mas
em público insistia em que "a vasta maioria do corte de impostos
beneficia a base do espectro tributário". Em particular, Dick Cheney disse a O'Neill que "Reagan
provou que déficits não importam". Em público, ele se descreveu como "um sujeito linha dura,
no que tange ao déficit".
Assim, Phillips está certo: o governo Bush demonstra profunda
hipocrisia no que tange às suas
principais políticas; o que diz contraria não só aquilo que faz, mas
aquilo que realmente pensa. Então, o que conduz de fato suas decisões estratégicas?
John Dilulio, ex-diretor do programa de "iniciativas comunitárias e de base religiosa" da Casa
Branca, disse a Suskind em 2002:
"Não há precedentes em nenhuma Casa Branca da era moderna
para o que está acontecendo aqui:
a falta completa de um aparato estratégico. O que temos é tudo -e
quero dizer literalmente tudo-
dirigido pela ala política".
O'Neill vai além. Considerem,
por exemplo, aquilo que pode vir
a ser considerada a mais comprometedora das decisões de Bush:
abandonar o Protocolo de Kyoto
e, na prática, abandonar qualquer
tentativa de enfrentar o aquecimento global. O relato de O'Neill
deixa claro que ninguém tentou
estabelecer quais eram os fatos,
que vantagens e desvantagens estariam envolvidas na adesão ou
na rejeição do tratado. Em lugar
disso, "as preocupações do setor
de energia e as arengas sem base
firme do lobby do setor eclipsaram as considerações quanto à
ação sobre o aquecimento global.
Ponto". Ou, como O'Neill resume
essa abordagem política: "A base
(ou seja, a base republicana de
Bush) quer que as coisas sejam assim, e quem sabe estejam certos".
O que emerge do livro de Suskind é um quadro de um governo
inteiramente cínico -muito
mais cínico que o de Nixon, no
qual a corrupção era localizada e
boa parte do processo político
continuava a ser gerida por gente
séria, até mesmo idealista. Sob
Bush, ao que parece, a retórica política não tem nenhuma relação
com a realidade -o que os funcionários dizem não tem nada a
ver com o que fazem, ou com o
que pensam. E as decisões estratégicas são dirigidas inteiramente
pela política, por aquilo que a ala
política acredita que vá soar bem
"junto às bases".
Mas, nesse caso, qual é a finalidade? Se tudo o que Bush e seu governo fazem é político, o que querem conquistar com seu poder?
Os republicanos tradicionalistas
que conheço se apegam à crença
de que o maquiavelismo é apenas
temporário e que foi adotado para
servir a um objetivo mais elevado.
Assim que a eleição de 2004 tiver
sido vencida, dizem, Bush mostrará suas verdadeiras cores como
idealista, como alguém que de fato acredita em governo pequeno e
em livre mercado.
Mas, se Phillips estiver certo, e
creio que esteja, não existe objetivo mais elevado. As motivações
de Bush são dinásticas -garantir
o lugar que é devido à sua família.
Embora ele talvez tenha certas
preferências políticas -como
aquela "fidelidade política instintiva" ao setor de investimento-,
as decisões do governo existem
para servir à aquisição de poder, e
não o contrário.
De acordo com pessoas que o
observaram no Texas, Karl Rove é
devoto de Maquiavel, especialmente de "O Príncipe". E, como
aponta Phillips, "os leitores norte-americanos de "O Príncipe", no século 21, acreditam ter descoberto
um memorando da Casa Branca,
muito mal disfarçado". Porque o
livro de Maquiavel tratava de como conquistar e reter o poder, e
não do que fazer com ele.
Assim, qual é o estado da
União? Que Phillips tenha a última palavra: "O advento de uma
dinastia com inclinações maquiavélicas em um momento que pode ser maquiavélico para a república norte-americana não é uma
coincidência feliz... O governo nacional se afastou, ao menos temporariamente, da comprovada
tradição de um líder escolhido pela maioria ou uma pluralidade do
eleitorado e se tornou uma sucessão dinástica, cuja herança infortunada envolve privilégio, manobras de bastidores e conexões não
explicadas em todo o mundo".
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