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ARTIGO
Senso de supremacia de Bush está inflado
GEORGE SOROS
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"
As tropas americanas e britânicas estão prontas para invadir o
Iraque; o resto do mundo é quase
todo contra. Entretanto Saddam
Hussein é amplamente visto como um tirano que precisa ser desarmado, e o Conselho de Segurança da ONU, com voz unânime,
exigiu que ele revele e liquide suas
armas de destruição em massa. O
que foi que deu errado?
O Iraque é o primeiro caso em
que está sendo aplicada a Doutrina Bush, e ela está provocando
uma reação alérgica. A doutrina
se ergue sobre dois pilares. O primeiro diz que os EUA farão tudo
o que estiver em seu poder para
conservar sua supremacia militar
inconteste. O segundo é que eles
se arrogam o direito de empreender ações preventivas.
Esses pilares sustentam dois tipos de soberania: a americana,
que tem precedência sobre os tratados internacionais, e a dos os
outros países, sujeita à Doutrina
Bush. É uma situação que traz à
mente o livro "A Revolução dos
Bichos", de George Orwell: todos
os animais são iguais, mas alguns
são mais iguais do que outros.
A Doutrina Bush se fundamenta na crença de que as relações internacionais são relações de poder; a legalidade e a legitimidade
seriam meros enfeites. Essa crença não é inteiramente falsa, mas
ela exagera um aspecto da realidade -o poderio militar-, excluindo todos os outros.
Vejo um paralelo entre a busca
de supremacia americana conduzida pela administração Bush e
um processo de "boom e bust"
(bolha no mercado acionário). As
bolhas não surgem do nada. Elas
têm uma base sólida na realidade,
mas a realidade é distorcida por
conceitos equivocados. No caso
em pauta, a posição dominante
dos EUA é a realidade, e a busca
da supremacia é o conceito equivocado. A realidade pode reforçar
o conceito equivocado, mas, com
o tempo, a distância entre a realidade e sua interpretação falsa se
tornará insustentável.
Durante a fase de auto-reforço,
a idéia equivocada pode ser testada e reforçada. Isso aprofunda o
abismo, levando, mais dia menos
dia, a uma inversão da tendência.
Quanto mais tempo essa inversão
levar para acontecer, mais devastadoras serão suas consequências.
Essa direção tomada pelos
acontecimentos parece inexorável, mas o processo de "boom e
bust" pode ser interrompido em
qualquer etapa, e poucos deles
chegam aos extremos da recente
bolha no mercado acionário.
Quanto antes o processo é abortado, melhor. É assim que vejo a
busca de supremacia americana
na qual a gestão Bush se lançou.
Inimigo definido
O presidente George W. Bush
chegou ao poder com uma estratégia coerente baseada no fundamentalismo de mercado e no poderio militar. Mas, antes de 11 de
setembro de 2001, faltava-lhe um
mandado claro ou um inimigo
claramente definido. O ataque
terrorista mudou tudo isso.
O terrorismo é o inimigo ideal.
É invisível; logo, nunca desaparece. Um inimigo que representa
uma ameaça real e reconhecida
pode manter a coesão de um país.
Isso é especialmente útil quando a
ideologia dominante se baseia na
defesa aberta dos interesses próprios da liderança. A administração Bush fomenta o medo de maneira proposital porque isso ajuda
a manter o país unido em torno
do presidente. Percorremos um
longo caminho desde o ditado de
Franklin D. Roosevelt segundo o
qual nada temos a temer a não ser
o medo propriamente dito.
Mas a guerra ao terrorismo não
pode ser aceita como princípio
condutor da política externa dos
EUA. O que será do mundo se o
país mais poderoso do planeta
preocupar-se unicamente com a
sua própria preservação?
A política de Bush já provocou
várias e graves consequências adversas não-intencionais. A Otan
está desmoronando, e a União
Européia está dividida. Os EUA
são um gigante temeroso que pisoteia tudo. O Afeganistão foi libertado, mas a lei e a ordem não
foram restabelecidas fora dos limites de Cabul. O conflito israelo-palestino é uma chaga aberta.
Além do Iraque, uma ameaça ainda maior surge, sombria, na Coréia do Norte.
A economia mundial está em
recessão, os preços das ações estão em queda, e o dólar está perdendo força. Ocorreu nos EUA
uma mudança dramática de superávit orçamentário para déficit.
É difícil identificar qualquer outro
momento em que as condições
econômicas e políticas tenham se
deteriorado tão rapidamente.
O jogo ainda não acabou. Uma
vitória rápida no Iraque, com
poucas vidas perdidas, seria capaz
de gerar uma inversão dramática.
O preço do petróleo poderia cair,
o mercado acionário comemoraria os resultados, os consumidores poderiam superar seus receios
e voltar a gastar, e as empresas poderiam reagir, aumentando seus
gastos de capital.
Os EUA deixariam de depender
do petróleo saudita, o conflito israelo-palestino se tornaria menos
intratável, e negociações com a
Coréia do Norte poderiam ser iniciadas sem perda de moral. É com
isso que Bush está contando.
Equívoco reforçado
Uma vitória militar no Iraque
seria a parte fácil. É o que viria a
seguir que deve nos fazer parar
para pensar. Num processo de
"boom e bust", quando se passa
num teste sem maiores dificuldades, o conceito equivocado que
deu origem ao processo tende a
ser reforçado. É isso o que pode
acontecer no caso atual.
Ainda não é tarde para impedir
que o processo de "boom e bust"
fuja do controle. O Conselho de
Segurança poderia dar mais tempo às inspeções de armas.
A presença militar na região poderia ser reduzida -mas incrementada se o Iraque resistisse.
Uma invasão poderia ser organizada para o final do verão. A ONU
teria uma vitória. É isso o que a
França está propondo e que o Reino Unido ainda poderia fazer
acontecer. Mas as chances são
poucas; Bush praticamente já declarou guerra.
Esperemos que, se houver guerra, ela dure pouco e custe poucas
vidas. Remover Saddam Hussein
do poder é uma coisa boa, mas a
maneira como Bush quer fazê-lo
precisa ser condenada. Se quisermos que a humanidade progrida,
os EUA terão de exercer um papel
mais construtivo.
George Soros é presidente da Soros
Fund Management.
Tradução de Clara Allain
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