São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GUERRA SEM LIMITES

Combate ao terror justificaria o uso de pressão física, sustentam alguns; para outros, proibição deve ser total

Americanos enfrentam dilema da tortura

John Moore-11.mai.2004/Associated Press
Americano responsável por interrogatórios de iraquianos entra em sala destinada para tal fim na prisão de Abu Ghraib, perto de Bagdá


OTÁVIO DIAS
DA REDAÇÃO

Desde os atentados de 11 de setembro de 2001 e a declaração da "guerra contra o terrorismo" pelo presidente George W. Bush, cresce nos Estados Unidos o debate sobre o uso de pressão psicológica e força física -eufemismos de tortura, para defensores dos direitos humanos- no interrogatório de prisioneiros suspeitos de envolvimento com o terror.
A recente divulgação de fotos de humilhação e tortura de iraquianos na prisão de Abu Ghraib, perto de Bagdá, e as crescentes críticas à detenção, por mais de dois anos, de centenas de suspeitos sem acusação formal na base militar americana de Guantánamo, em Cuba, deram impulso à polêmica discussão.
Alan Dershowitz, conhecido advogado americano (atuou no caso O.J. Simpson) e professor da Faculdade de Direito da Universidade Harvard, considera "hipocrisia" tratar a tortura como um direito absoluto, que não pode sequer ser discutido. "É preciso parar de fingir que todos os presos são tratados de acordo com as Convenções de Genebra", disse à Folha. "A definição de Genebra para tortura [ver quadro] é estúpida e contraproducente porque é tão absoluta que nenhum país pode cumpri-la."
"Então talvez seja irrealista proibir os assassinatos porque sempre haverá assassinos. Será então realista escrever, na lei, que em alguns casos podemos assassinar?", disse o historiador francês Pierre Vidal-Naquet, um dos principais críticos do uso da tortura pelas autoridades francesas na Guerra da Argélia (1954-62).
"As pessoas violam os sinais de trânsito, e ninguém diz que, por causa disso, eles se tornam irrelevantes", disse Florian Westphal, do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR), organização investida da função de guardiã das Convenções de Genebra.
"Numa democracia, devemos buscar a honestidade e a transparência, em vez da hipocrisia e da ocultação da verdade", disse Dershowitz, polemista e autor do livro "Por que o Terrorismo Funciona - Compreendendo a Ameaça, Respondendo ao Desafio", publicado nos EUA em 2002.
Com a detenção de mais de 3.000 suspeitos de envolvimento com a rede Al Qaeda em dezenas de países, agentes dos serviços de inteligência e funcionários do governo dos EUA têm defendido, ainda que não publicamente, a aplicação de uma certa dose de pressão física e psicológica para obter informações que impeçam atentados e "salvem vidas".
Os adeptos desses interrogatórios mais duros (apelidados de "stress and duress", algo como "exaurir e intimidar") negam defender a tortura, pois as técnicas não seriam muito dolorosas e não ameaçariam a integridade física e psicológica dos interrogados.
Na quinta-feira, o jornal "The New York Times" noticiou que, nos interrogatórios de Khalid Sheikh Mohammed -um detento de alto nível que, acredita-se, ajudou a planejar o 11 de Setembro-, agentes da CIA usaram uma técnica conhecida como ""water boarding", na qual o suspeito é amarrado e empurrado à força para dentro da água repetidamente até chegar ao limite de seu fôlego. "Esse seria um caso claro de tortura", afirmou a Anistia Internacional anteontem.
Segundo o "Times" e o "Washington Post", a administração Bush aprovou regras secretas a serem usadas em interrogatórios de suspeitos de "alto valor". A revista "New Yorker" deve publicar amanhã artigo no qual diz que o governo Bush teria autorizado métodos semelhantes no Iraque.
Em depoimento no Senado, o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, admitiu que os advogados do Pentágono aprovaram métodos como "administração do sono", "manipulação da dieta" e "posições estressantes". Segundo Rumsfeld, eles seriam "consistentes com as Convenções de Genebra". Anteontem, fontes do Pentágono disseram que alguns métodos serão revogados.
"Essas técnicas de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante são violações graves às Convenções de Genebra e à Convenção contra a Tortura, da qual os EUA são signatários", disse a Anistia.
Há um precedente importante. Em 1987, a Justiça de Israel, após ampla discussão pública, autorizou o uso de "pressão física moderada" em interrogatórios de suspeitos de ligação com o terror. O sinal verde só valeria nos chamados cenários "bomba-relógio": quando houvesse convicção de que uma informação do suspeito poderia evitar um atentado iminente (leia mais abaixo).
"Se eu soubesse que o homem à minha frente possui a informação crítica que permitiria aos EUA prevenir um ataque catastrófico em solo americano, eu o torturaria e assumiria as conseqüências. Você não?", disse um oficial de alto nível do FBI ao jornal "The International Herald Tribune".
"O cenário das "bombas-relógios" parece muito convincente, mas parte do princípio de que os interrogadores já sabem o que o interrogado pode contar, já decidiram que ele possui determinada informação", disse Westphal, do CICR. "Ou seja, o suspeito não é mais suspeito. Já é culpado."
Jan Malinowski, do Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura, rejeita qualquer sugestão de tentar graduar o que é tortura e o que não é. "Determinado ato pode fazer uma pessoa sofrer tanto que para ela certamente seria definido como tortura. Para outra pessoa, o mesmo tratamento pode não causar tanto sofrimento. As pessoas reagem de forma diferente. Por isso não é o caso de definir graduações. A proibição tem de ser incondicional", afirmou.
"É preciso parar de usar a palavra tortura e começar a usar termos que dêem uma idéia melhor das técnicas utilizadas", disse Dershowitz. "Devemos fazer distinções entre humilhar, amedrontar, impor dores moderadas ou fortes." Embora afirme e reafirme ser contra a tortura, o professor de Harvard causou controvérsia ao citar a "introdução de agulhas esterilizadas sob as unhas" como exemplo de um método "não-letal" que poderia ser eficaz para forçar um suspeito a falar.
"Fiz isso de propósito porque não queria ser vago. Quis dar um exemplo de uma tática que não causa dano físico permanente, mas é terrivelmente dolorosa", disse Dershowitz à revista americana "Salon". "O que pretendi mostrar é que, nesse caso, a tortura não estaria sendo usada de forma que pudesse levar à morte, mas como meio de simplesmente produzir uma dor insuportável."
Dershowitz propõe que, caso a sociedade americana, após um debate público e transparente, decida admitir o uso de tortura -ou métodos de pressão física ou psicológica- em situações excepcionais, tais interrogatórios só deveriam ocorrer com autorização de uma alta autoridade do Executivo ou do Judiciário.
"O presidente dos EUA, o secretário da Defesa ou um juiz de instância elevada precisariam autorizar. Do jeito que está hoje, oficiais de baixa patente têm as decisões em suas mãos", disse.
Ele defende a documentação dos interrogatórios: "Se vamos utilizar técnicas mais duras, devemos assumi-las. Se achamos que humilhação é ok, vamos filmá-la. A melhor maneira de prevenir abusos é a transparência".
Em debate com Dershowitz exibido pela rede de TV CNN, Ken Roth, diretor-executivo da Human Rights Watch, disse que a aceitação da tortura como instrumento na guerra contra o terror seria uma derrota para os EUA.
"Se abrirmos a porta, enviaremos o sinal de que os fins justificam os meios. E isso é exatamente o que pensa Osama bin Laden: seus fins justificam os meios -atacar o WTC e matar milhares de civis inocentes", disse Roth.
"Se nós vamos violar a proibição igualmente básica de torturar, estaremos reafirmando a lógica falsa do terrorismo. E, nesse caso, acabaremos perdendo a guerra."



Texto Anterior: Korei e Powell reúnem-se pela primeira vez
Próximo Texto: Frases
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.