São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003 |
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APAGÃO AMERICANO Para o semiólogo Marshall Blonsky, episódio mostra que senso comunitário do nova-iorquino é falso e o mercantilismo prevalece Blecaute faz aflorar individualismo em NY
OTÁVIO DIAS "MENTIRA" - "Dormi ontem
[quinta-feira] até as quatro da tarde. Acordei exatamente no momento em que começava o blecaute. Tentei ligar para uns amigos, mas o telefone não funcionava. O ar-condicionado estava desligado, tentei ligar, não funcionou. Liguei o computador, nada.
A TV, idem. Meu celular estava
sem bateria. Então, concluí que a
Al Qaeda havia atacado Nova
York. PEQUENAS COMUNIDADES - "Tive um instinto de sobrevivência e
decidi descer os dez andares do
meu prédio, mas esqueci a lanterna. Quando cheguei ao térreo, o
lobby estava iluminado apenas
por umas velas. Tive a sensação de
estar em uma cerimônia religiosa. MERCANTILISMO - "Muita gente
teve de descer dezenas de andares
sem luz, sem saber o que estava
acontecendo, imaginando ser um
ataque terrorista. As pessoas tentavam comprar água, comida,
mas os supermercados estavam
fechados, acho que com medo de
saques. Apenas os mercadinhos
estavam abertos. Mas os donos
gritavam: "Não aceitamos cartões
de crédito", "não temos pilhas",
"não temos velas", "não temos fósforos". Só deixavam entrar de três
em três, eram muito rudes. FALHA SOCIAL - "Formaram-se
pequenas comunidades, em torno de um rádio, numa fila para
comprar gelo. Mas não acho que
isso seja uma comunidade, porque há uma linearidade, uma fila,
mas na frente da fila há mercantilistas gritando "não tem gelo". Pela
minha observação e análise rápida, a comunidade falhou. Apesar
de o prefeito ter apelado à comunidade, o que vi foi uma comunidade falsa, de mentira." REFUGIADOS - "Muitos comerciantes trouxeram seus produtos
para as calçadas. E começaram a
se formar filas enormes. Senti-me
mal, com vergonha de ficar na fila.
Parecia uma fila de refugiados. De
repente, me vi caindo do Primeiríssimo Mundo para uma sociedade do Quarto Mundo. Lembrei-me, sei lá, da Libéria." PÂNICO EM CÂMERA LENTA -
"Havia no ar uma sensação de "catástrofe em câmera lenta". O pânico não chegou de forma súbita,
mas foi se aproximando e tomando conta da cidade e das pessoas
como um fog, um gás, um miasma. Parecia que ia lentamente se
interiorizando na vida das pessoas, que se transformavam, aos
poucos, em sobreviventes." MENSAGEM AO TERROR - "Achei,
e continuo achando, que foi um
ataque terrorista real. De qualquer maneira, pareceu-me um sinal ou uma mensagem a todos os
fundamentalistas islâmicos e outros inimigos dos EUA -muitos
deles, aliás, com bons motivos para nos odiar- de que isso pode
ser feito de novo. Se pode acontecer "naturalmente", pode ocorrer
de novo "culturalmente", por ação
de profissionais do terror." SOLIDÃO - "Andei uns 30 quarteirões, comprei água, comida. Ao
final, tinha uns quatro pacotes na
mão. Estava um calor danado,
muito úmido, minha camisa estava completamente molhada. Ao
chegar ao meu prédio, subi os dez
andares. Exausto, no escuro, perdi a sensação de espaço, a orientação. Bati em algumas portas, ninguém atendeu. Finalmente, vi
uma luz tênue iluminando o corredor. Vinha do apartamento de
uma vizinha. Pedi que esperasse
até eu chegar ao meu apartamento, mas ela bateu a porta na minha
cara. Senti-me só e em pânico." BAUDRILLARD - "Tenho uma televisão de 40 polegadas, um aparelho de som, DVD, três celulares,
TV a cabo, fax, computador, internet. Vivo no meio de todas essas coisas, mais do que as controlo. O sociólogo francês Jean Baudrillard diz que nós, no Primeiro
Mundo, achamos que estamos
protegidos da natureza, das calamidades naturais, do subdesenvolvimento pela intensa atmosfera de ciência e de imagens na qual
vivemos. Ele chama isso de "semiosfera". ESQUECIMENTO - "Os nova-iorquinos, e os norte-americanos em
geral, estão tão acostumados a seu
conforto que tenho certeza de
que, assim que a energia voltar,
esquecerão, num minuto nova-iorquino, tudo o que aconteceu." |
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